Senhor Milagre de Tom King
Sim, esse vai ser um post de rasgação de seda.
Todo e qualquer leitor de quadrinho ouviu falar do run do Tom King no título do Senhor Milagre. Elogiadíssimo após sair de um run de sucesso no título do Visão pela Marvel, Tom King usou praticamente a mesma temática em ambas as histórias: querer ser simplesmente humano.
No caso do Visão era a velha história da maquina querendo emular o comportamento humano, o questionamento sobre a consciência e a alma. Será que as máquinas tem alma? Em Senhor Milagre era a história de um Novo Deus que já vivia uma vida como um humano comum na Terra, gozava de fama no show business e era casado com a mulher que amava,uma Fúria que outrora foi sua caçadora antes de fugir pra nosso mundo. Só que o sujeito tinha uma importância vital no mundo que deixou pra trás, e essa importância viria cobrar seu preço ameaçando a vida que construiu aqui. Li ambos os títulos, mas Senhor Milagre me prendeu de forma inescapável e vou dizer o porque nas linhas a seguir.
Lembro que quando li Senhor Milagre do Tom King pela primeira vez, há uns 2 anos atrás, pensei “Ok…Tom King não fez nada que já não tenha sido feito antes, que é contar o dia a dia de um super herói entre uma batalha e outra, só que faz um tempo que ninguém mais fez já que agora tudo é mega-saga”. E, de fato, não deixa de ser verdade! O diferencial é que além do Tom King escrever o cotidiano de um sujeito “comum” e casar maravilhosamente bem com a realidade fantástica a qual ele pertence ainda mantendo os questionamentos de sua vida mundana como pauta enquanto enfrenta uma guerra…tem o fato de Scott Free ser um poço de carisma. E não só ele, sua excelentíssima esposa, a Big Barda, também!
A história começa com Scott Free tentando suicídio e sendo levado as pressas ao hospital por Big Barda. Scott estava passando por um momento difícil, sobretudo com a recente perda de Oberon, seu ajudante e melhor amigo. Ao se recuperar e ser questionado sobre o porque fez o que fez em um programa de entrevista, Scott diz que tentava sua maior proeza como mestre das fugas impossíveis: Escapar da morte! Claro que a coisa não é tão simples e com o decorrer da história vemos que Scott está realmente perdido, tendo em Barda seu farol e sua tábua de salvação.
As coisas só se complicam quando Scott recebe a noticia de que o Pai Celestial, seu pai verdadeiro, morreu e Darkseid, seu pai de criação, agora possui a Equação Antivida, um poder capaz de acabar com as vontades individuais das pessoas e torná-las escravas da vontade de quem a possuir. A guerra final entre Nova Gênese e Apoklips, com Orion, filho adotivo do pai Celestial e biológico de Darkseid, tomando o comando de Nova Gênese e acusando seu “irmão” de estar sendo controlado pela Equação Antivida, está pracomeçar. Agora o Senhor Milagre terá que lutar uma guerra em um mundo que deixou pra trás há muito tempo, lidar com a loucura e desconfiança de seu irmão, com a tirania de seu pai, com fantasmas do passado e com novos e inesperados desafios em sua vida conjugal.
Traçando um paralelo quanto a humanidade e o fator “identificação com o leitor” de Scott Free com outro personagem famoso, eu poderia dizer que ele é o Homem-Aranha do Quarto Mundo. Certo que ao contrário de Peter Parker ele tem uma carreira de sucesso como escapista e ex-membro da Liga da Justiça, mas é o sujeito que você vai ver fazendo coisas simples que todo mundo faz, como deitar no colo da namorada/esposa para assistir TV, vai no mercado fazer compras de coisas que esqueceu que tinham acabado, vai fazer churrasco e chamar os amigos em um domingo e, as vezes, vai simplesmente sentar no quintal e olhar as estrelas a noite. A diferença e o fator que torna o personagem tão adorável pra mim, está no fato de que ele faz essas coisas simples com grande entusiasmo e alegria por um simples motivo: Ele NUNCA pôde fazer nada disse, pois cresceu, literalmente, no inferno!
Sim, caso você nunca tenha parado pra pensar, Nova Gênese é a representação do paraíso e Apokolips é a representação do inferno, ainda que em Nova Gênese a “divindade” dos Novos Deuses cubra muita hipocrisia e soberba. Scott, assim como Barda,cresceu no orfanato da Vovó Bondade, que só tinha bondade no nome, e comeu quilos do pão que o diabo amassou e sambou em cima. O sujeito era ainda mais cobrado por ser “filho” de Darkseid (pra quem nunca leu Novos Deuses, Darkseid e o Pai Celestial trocaram seus filhos como “assinatura” de um acordo de paz), o qual acreditava que apenas a dor e o sofrimento elevam o espirito e trazem a verdadeira força. Por isso não é nada incomum ver Scott enxergando valor nas pequenas coisas e nos pequenos momentos que, pra qualquer outro, seriam só bobagens. Em um momento de uma história da Liga Cômica ele está fascinado apenas com o fato de poder olhar pro céu a noite e ver estrelas no quintal de casa. Já na história escrita por Tom King, temos vários momentos assim porém potencializados por um acontecimento novo em sua vida, e a cena em que ele descobre é uma das coisas mais bonitinhas que eu já vi em uma HQ.
Já no caso de Big Barda, a mulher foi criada para ser uma Fúria, uma das soldados de elite da Vovó bondade, frias, calculistas e cruéis. A mulher é gigante (ela tem por volta de 1,86 de altura), é uma pilha de músculos, tem um olhar de fazer o cu trancar de medo, tem os modos de um viking puto num dia ruim e tem o bônus de intimidação de ser linda de morrer. Só que ao lado de Scott ela foi descobrindo novos sentimentos que pensou não ter, e Tom King faz questão de mostrar que essa mulher monstruosamente intimidadora as vezes se sente mais a vontade lutando contra exércitos do que lidando com alguns desses sentimentos.
Tem uma cena em que um diálogo meio “Taratinesco” está rolando (sabe quando os personagens falam de frivolidades enquanto algo maior está acontecendo? Então!) e Barda fala algo que é de cortar o coração. Ela diz algo como “Eu posso me livrar de muita coisa, pois não preciso de tudo. Você sabe que eu só compro muitas coisas porque nunca pude ter nada!” se referindo a infância perdida em Apokolips. Porém seu maior bem é o próprio Scott. Ele é, como minha senhoura costuma chamar os bichinhos de estimação dela, seu “pacotinho de amor”. É o sujeito que lhe mostrou todo um novo mundo onde amor era um sentimento verdadeiro e não apenas uma palavra usada de maneira deturpada pra causar um tipo de Síndrome de Estocolmo, como Vovó Bondade fazia (e que, aliás,é mostrado na história que meio que funcionou com o Scott). Quando Scott tenta se matar, Barda vê esse novo mundo rachar e, mais adiante, quando questiona o porque de Scott fazê-lo, temos outro diálogo de cortar o coração.
Mas nem só de drama vive Senhor Milagre.A comédia também tem seus momentos e eles são geniais! A começar pelo personagem Funky Flashman, criado originalmente por Jack Kirby pra ser uma alfinetada em Stan Lee, o empresário entusiasmado que se aproveita pra engrandecer em cima do trabalho dos outros. Aqui, Tom King brinca com o fato de Stan Lee deturpar as histórias que Jack Kirby criava (entenda mais clicando AQUI ), só que King também usa o personagem pra prestar homenagens ao velhinho da Marvel.
Outros momentos hilários são as negociações com os vilões de Apokolips, sempre em situações cheias de humor negro,com destaque pra Kalibak puxando um par de óculos pra ler um documento e pra os pés da mesa de negociação, composta por Novos Deuses prisioneiros de guerra.
Obviamente, não apenas o roteiro de Tom King merece destaque. A arte de Mitch Gerads é maravilhosa e sua narrativa visual, com páginas compostas sempre por nove painéis, é genial. Sério, cada página daria um quadro de pop art que enfeitaria qualquer sala com muito estilo.
Obviamente eu não vou me aprofundar mais no desenrolar da trama porque Senhor Milagre MERECE ser lido! E o melhor de tudo é que você pode encontrar as duas edições na Amazon em promoção facilmente (no exato momento em que escrevo esse texto, ambas as edições estão em preço promocional de R$13,90). Tenha certeza que se você não conhece muito o personagem vai gostar da trama pelo elemento humano, mas se você, assim como eu, é um fã do personagem e do Quarto Mundo como um todo, vai simplesmente ADORAR cada segundo de leitura! Então,corra atrás!
Nota: 10