Review Diferente: A Diferença Invisível
Olá, jovos e jovas, como vão? Eu vou bem, minha coluna não…
Ando com uma lombalgia filha da mãe e por isso não tenho escrito muitos posts justamente porque meu “local de trabalho” é sentando em uma cama sem lugar pra encostar as costas, e é justamente por isso que estou com lombalgia. Maldita seja! Bem, mas o post não é sobre as dores filhas da puta que sinto enquanto escrevo mas, sim, pra falar de um quadrinho que merece que eu suporte estas dores: A Diferença Invisível de Julie Dachez e Mademoiselle Caroline.
A maneira como encontrei essa HQ foi a mais acidental possível. No dia dos namorados saí com a senhora Hellbolha e, numa passagem pela feira, lembrei que tinha um lugar que vende livros baratinhos, e onde já comprei algumas coisas da Darkside Books por R$15. Futucando lá, encontrei Menina Má do William March, o qual a senhora Hellbolha prontamente reclamou para si como parte dos presentes da comemoração, e eu continuei futucando os outros livros até que me deparei com uma HQ publicado pela editora Nemo com um traço simples e muito diferente. Não dei lá muita atenção mas resolvi ler a sinopse assim mesmo. A sinopse sim, me pegou pelo pé. Perguntei o preço ao vendedor e ele disse que ambos estavam custando 10 golpinhos. Como estava baratinho, levei a HQ para mim. E não me arrependi!
“Mas, do que se trata A Diferença Invisível, tio Hellbolha?” vocês perguntam, leitores e leitoretes. Bem, a trama gira em torno de Marguerite, uma jovem francesa de 27 anos que tem uma vida aparentemente comum. Mora em seu apartamento com seu namorado, seu cãozinho e dois gatos. No entanto, Marguerite tem algumas particularidades, como uma rotina pré-programada a qual ela sente uma enorme necessidade de seguir a risca todos os dias, não suporta locais barulhentos, tem dificuldades em manter relações sociais e isso acaba trazendo alguns problemas em sua vida profissional, social e no seu relacionamento com seu namorado.
Outro problema para Marguerite são as sentenças de duplo sentindo. Para ela, tudo tem um significado literal e é justamente depois de uma dessas confusões com “mensagens disfarçadas” que a vida de Marguerite dá uma guinada. Acontece que um vizinho sempre a assediava mas ela nunca levava a mal. Até que um dia o tal sujeito diz que irá viajar para o Uruguai e precisaria de ajuda com os problemas da língua, já que não falava espanhol e Marguerite tinha certo domínio, já que sua mãe era espanhola. Acontece que tudo não passava e um truque e a “ajuda com a língua” que o sujeito queria era outra. Obviamente Marguerite rechaça o sujeitinho que a acusa de se fingir de sonsa por não entender a “mensagem” e a chama de louca. Isso, unido ao fato do namorado de Marguerite viver repetindo que ela precisava agir como uma “pessoa normal”, já que ela nunca queria ir as festas dos amigos dele, faz com que Marguerite busque na internet uma explicação para seu comportamento. Lá, ela descobre que existe uma possível explicação pra tudo: Marguerite poderia ter um Transtorno do Espectro Autista, a síndrome de Asperger.
A partir daí a HQ mostra que, sim, Marguerite tem Asperger, o que, inicialmente, a deixa muito feliz por encontrar uma explicação lógica para seu comportamento. No entanto as coisas mudam quando ela percebe que sua condição não irá despertar a compreensão das outras pessoas, sobretudo de muitas das mais próximas a ela.
A diferença Invisível é a auto-biografia da escritora Julie Dachez, o que traz uma profundidade ainda maior ao assunto já que nos mostra o ponto de vista de quem tem Asperger e as dificuldades que ela passa por descobrir o quão taxativa a condição pode ser. Para que você entenda, e isso é muito bem colocado na HQ, sempre que se fala que alguém tem autismo a MAIORIA ESMAGADORA das pessoas vai logo pensar em alguém “esquisito, que fica babando e não fala nada com nada”, quando isso não é algo nem infimamente próximo da verdade. E esse é discurso que Marguerite ouve muito de muitas pessoas, sempre acompanhado de um “Mas você é normal! Conversa e olha nos olhos! Você só está estressada!”. A coisa só piora quando ela tenta procurar ajuda médica e psicológica e até os profissionais dessas áreas riem dela e a desacreditam. E quando Marguerite achou que tinha se encontrado, se sente perdida de novo. Isso nos é apresentando durante a história de um jeito que te deixa incrédulo(a) e te faz sentir as dificuldades de Marguerite com muito mais peso.
Confesso que outro fator que me pegou pelo pé foi a identificação. Não, eu não tenho asperger (acho…já que muito do comportamento anti-social comum a condição me são bem familiares e tanta gente já falou que acha que eu sou autista…), mas quando tinha 16 anos eu tive uma crise de nervos por causa do stress. Ninguém acreditava que eu tinha stress, afinal eu era apenas um “adolescente cujo a unica obrigação era estudar”, coisa que ouvi muito. Pois bem, só vieram acreditar em mim quando tive uma paralisia facial que quase evoluiu pra um derrame e o médico foi categórico ao dizer “É stress!”. Claro que é algo até pequeno, se comparado com o que Marguerite passa pois sua condição é para a vida toda, mas foi esse pequeno elo de ligação que me fez entender a personagem de forma mais profunda em uma camada mais pessoal.
Ah, e vale citar aqui um dado importante! A confusão quanto ao comportamento de Marguerite ser taxado como de uma “pessoa normal” porque conversa olhando nos olhos e coisas pouco comuns ao autistas, se deve o fato de que, segundo estudos, as mulheres com asperger conseguem simular o comportamento “comum” por, como as mulheres em geral, serem mais empáticas e, justamente por isso, elas adotam um comportamento “camaleônico”, que as fazem simular o “comportamento social comum” e aceitar certas “regras” de convívio social. No entanto, essa “simulação” é o que acaba dificultando a identificação dos sintomas com relação as mulheres e o que acaba gerando a descrença de muitas das pessoas próximas a elas quando são confirmadas como “aspies”. Agora, voltemos a HQ.
O roteiro de Julie Dachez é fluído e natural e consegue te gerar simpatia por Marguerite (seu alter-ego) em poucas páginas. Ela transpõe suas experiências pessoais com uma verdade e uma sinceridade arrebatadoras que te pegam pela mão e te levam por essa viagem do inicio ao fim. O único momento em que o ritmo é quebrado é quando Marguerite é finalmente diagnosticada e, em seguida, passa a frequentar o Centro de Apoio ao Autismo. Nesse ponto a história fica um pouco didática demais e acaba perdendo o ritmo narrativo natural e tomando um tom meio “panfletinho da prefeitura”. Mas, passada essa parte, a história volta aos “trilhos da naturalidade” e segue assim até o fim.
Já os desenhos de Mademoiselle Caroline…o que dizer? São simples, bem estilizados e…PERFEITOS! Aliás é interessante frisar que Julie Dachez não se coloca como narradora da história mas prefere, de forma muito bem pensada, tornar Mademoiselle Caroline a narradora dos fatos, mesmo que ela apareça pouco na história. Acontece que Caroline era dona de uma livraria onde, todo os dias, Marguerite passava pela frente de forma quase ritualística, e isso chamava sua atenção. E quando Marguerite resolve ler e se informar mais sobre asperger, é justamente na livraria de Caroline que ela vai buscar livros que tratem do assunto. Tempos depois Marguerite descobre que Caroline desenha e, graças a uma sugestão de uma amiga, ambas se unem par levar essa história para os quadrinhos. E a narrativa de Mademoiselle Caroline é genial! Ela consegue transpor os medos, inseguranças, o caos interior e as pequenas alegrias de Marguerite nas páginas de uma maneira sublime.
Por fim, eis um quadrinho que caiu de surpresa no meu colo e fico extremamente feliz por isso. Ao lado de Desconstruindo Una, que encontrei na mesma banca da feira e cujo a resenha você pode ler AQUI, esta é uma das HQs fora do eixo “marmanjos de pijama” (♪♫descendo as escadas ♪♫) que mais tive o prazer de ler até este ponto de 2018. E enquanto Desconstruindo Una é necessariamente desconfortável, A Diferença Invisível é admiravelmente esclarecedor e, indubitavelmente, um material que, doravante, figurará na minha lista de recomendações.
Nota: 9,5 (só não foi 10 pela parte “didática” que ficou realmente destoante de todo o resto)