Protuário 666: Os Anos de Cárcere de Zé do Caixão.
“Já vivo isolado pela ignorância desses escravos de crenças e incoerências que direcionam suas vidas. Mesmo aqui, sou mais livre que todos eles.”
Foi com surpresa que o Brasil recebeu ontem, dia 19 de fevereiro de 2020, a noticia do falecimento aos 83 anos do nome mais importantes do cinema de terror nacional, o diretor, roteirista e ator Jose Mojica Marins, mais comumente conhecido como sua mais célebre criação, o coveiro sombrio e violento, Zé do Caixão.
E a fama que José Mojica angariou, a ponto de ser admirado por diretores de renome como Quentin Tarantino, Tim Burton e tantos outros não surgiu a toa. Em 1964, quando lançou o primeiro filme estrelado por Zé do Caixão, o famoso À Meia-Noite Levarei a Tua Alma, José Mojica não tinha recursos mas, ainda assim, foi com a cara e a coragem e fez um filme que nada deixava a dever aos grandes filmes de terror Hollywoodianos. Sem poder pagar por um cenário de cemitério enorme ou mesmo gravar em um, montou um cemitério em um pequeno palco. Sem ter dinheiro para efeitos especiais para fazer um fantasma com um visual assustador, pegou o rolo de filme e colou, frame por frame, purpurina sobre o ator que interpretava o defunto. O homem era um gênio!
Em 1967 Mojica lançaria a continuação de A Meia-Noite Levarei Tua Alma, o igualmente genial Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. Dessa vez o sujeito conseguiu fazer um seguimento colorido de quase 10 minutos em seu filme preto e branco, algo complicado para a época e pros recursos que ele tinha. Isso sem falar que criou um dos infernos mais perturbadores do cinema justamente nesse segmento.
Mas Mojica passou por um problema sério com seu segundo filme quando a ditadura censurou seu filme e exigiu que o personagem Zé do Caixão, um ateu e cético que zombava não apenas da existência do sobrenatural como da crença cega dos homens em Deus, aceitasse a Deus na cena de sua morte ao final do filme. Na cena original, Zé do Caixão morria praguejando contra o nome de Deus. Mojica precisou redublar a cena, que ficou parecendo aquelas encenações fuleiras desses programas de igreja televisivos onde o número do cartão de crédito dos fiéis é mais importante que o amor ao próximo.
Tal acontecido enfureceu Mojica e atrapalhou seus planos, pois ele tinha em mente uma trilogia e traria Zé do Caixão de volta no filme Encarnação do Demônio. Graças a esse duro golpe, o terceiro filme de Zé do Caixão ficou na geladeira por 40 anos quando, finalmente, em 2008 o filme chegou aos cinemas nacionais.
Só que esses 40 anos eram tempo demais para se deixar em aberto. E também em 2008, o ilustrador Samuel Casal se uniu a roteirista Adriana Brunstein para contarem o período de tempo de Zé do Caixão na cadeia na graphic novel Prontuário 666: Os Anos de Cárcere de Zé do Caixão lançado pela falecida (quadrinisticamente falando) editora Conrad.
Na trama, situada em 1988, acompanhamos Josefel Zanatas, vulgo Zé do Caixão, preso já há 21 anos em um presídio em São Paulo respondendo por todos os assassinatos que cometeu em busca da mulher superior para gerar seu filho perfeito e dar continuidade a seu sangue. Como não conseguiu enquanto estava livre, Zé do Caixão aproveita o tempo na cadeia para fazer novos experimentos para concretizar seus objetivos e aproveita para se divertir matando a escória presa junta a ele, com um desprezo especial pelos pedófilos e abusadores de crianças por quem tem ódio mortal já que considera as crianças as criaturas mais puras e que não merecem sofrer nenhum mal neste mundo.
Claro que os “experimentos” de Zé do Caixão não passam desapercebidos pela diretoria do presídio, pelos guardas e nem por seus colegas de cárcere, e isso vai gerar retaliações contra ele…que irá pagar com o dobro de violência.
Samuel Casal e Adriana Brunstein acertam em cheio na hora não apenas de adaptar o universo de Zé do Caixão para os quadrinhos como encaixá-lo na cronologia do personagem. O clima dos filmes está total e completamente lá, intocado. O comportamento de Zé do Caixão é tão perfeito no papel que você quase consegue ouvir a voz de José Mojica Marins quando lê cada balão de fala do personagem. A critica ácida a sociedade corrompida e ao fanatismo religioso também seguem presentes de forma genial. E é claro que qualquer produção que se preze que tenha Zé do Caixão como protagonista tem que ter violência, gore pesado e alucinações macabras, e tudo está perfeitamente presente aqui.
Mas um aspecto que merece um destaque especial está na arte de Samuel Casal. Esqueça os desenhos tradicionais do quadrinhos de terror. Casal tem um estilo muito próprio que lembra muito uma xilogravura de cordel estilizada. O resultado não poderia ser mais perfeito para o clima da trama, sombria, angustiante, claustrofóbica, que te leva junto com os personagens nas cenas de alucinação e ainda apresenta um Zé do Caixão extremamente sombrio e com um ar demoníaco…mesmo que ele não acredite no demônio.
A HQ em capa cartonada com orelhas, papel offset e 120 páginas em preto e branco (basicamente o mesmo formato de um One-Punch Man, Lobo Solitário e Slam Dunk) pode ser encontrada facilmente hoje em dia dando uma rápida pesquisada internet afora. E o melhor, por precinhos pra lá de camaradas! Os preços vão de R$10,00 a R$25,00. Uma leitura que, caso você já conheça os filmes, irá te divertir e caso você não conheça, pode ter gerar curiosidade suficiente pra ir atrás. Mas a arte do Samuel Casal já é motivo suficiente pra se ter essa HQ.
Soube da morte do José Mojica Marins ontem e lembrei que tinha a HQ e resolvi ler hoje pra escrever sobre ela. Não foi um post muito detalhado mas, sei lá…quis fazer algo em tom de homenagem ao homem que criou um verdadeiro mito no imaginário brasileiro, tão facilmente reconhecível quanto o Saci, a Mula Sem Cabeça e a Caipora. Um mito que perdura até hoje e há de perdurar por muitos e muitos anos, pois como disse o próprio Mojica uma vez “Não existe substituto para Zé do Caixão”. O rei do terror nacional está morto. Vida longa ao rei. Vida longa a José Mojica Marins. Vida longa ao Zé do Caixão.