Os finais conturbados dos Novos Deuses.

Ou “Quando a DC agia com os quadrinhos igual agiu com o DCU”.

Recentemente resolvi reler Novos Deuses do Rei, Jack Kirby, porque consegui a edição 1 da coleção da Opera Graphica lançada em preto e branco no inicio dos anos 2000. Eu já falei muito dos Novos Deuses e do quanto eu ADORO essa saga, e falei também do Quarto Mundo por aqui mas vale citar certos aspectos da criação da odisséia Kirbyniana que vai nos levar até a razão que me levou a escrever esse post.

Após muitas e muitas tretas na Marvel, em 1970 Jack Kirby deixou a Marvel com o incentivo de sua esposa, Roz Goldstein, depois que Stan Lee entregou o cargo de editor chefe para Roy Thomas, mesmo com Kirby tendo co-criado praticamente todo o universo Marvel e dado o sangue pela editora. Com isso, ele foi parar na DC, que ficou animadissíma com a aquisição. Kirby tinha a intenção de criar seus próprios personagens lá mas lhe foi dito que ele precisaria trabalhar também em um título já existente da editora. Como Jack Kirby sempre foi contra tirar o emprego de qualquer pessoa, ele escolheu o título Superman’s Pal Jimmy Olsen já que a revista vivia mal das pernas e não tinha uma equipe fixa. Kirby incluiu a revista do Jimmy Olsen na saga que começou a criar do zero na editora e que era espalhada por três novos títulos e que acabou ficando conhecida como Quarto Mundo.

Segundo Mike Royer, amigo e um dos maiores especialistas em Jack Kirby vivos (quiçá O MAIOR), a ideia de Kirby era fazer algo inovador para a época: As revista do Quarto Mundo, excetuando a do Jimmy Olsen, teriam começo, meio e fim. Os personagens que morressem permaneceriam mortos e elas se interligariam para um apoteótico final. Ao fim, seriam lançados em fascículos encadernados como uma grande coleção literária. Mini-séries e edições encadernadas e de luxo são comuns hoje em dia, mas em 1970 isso era completamente impessável quando se tratava de quadrinhos. Porém, como a DC havia estipulado um número de vendas altíssimo com a aquisição de Jack Kirby graças a sua fama na Marvel e esse número não foi atingido, a editora jogou terra nos planos de Kirby e começou a cancelar seus títulos um a um e exigiu que ele fosse criando novos e não relacionados aos anteriores. Sim, basicamente foi a mesma coisa que a DC fez no cinema, quando Liga da Justiça, com um orçamento de 300 milhões fez 657 milhões de dólares e o primeiro Esquadrão Suicida, com um orçamento de 175 milhões fez 746 milhões nas bilheterias mundias e eles decidiram que os filmes foram fracassos porque não alcançaram a casa dos bilhões. Bem…não que eu realmente quisesse que o primeiro Esquadrão Suicida rendesse sequências. E só Deus sabe como aquela BOSTA de filme deu tanto dinheiro enquanto o Esquadrão Suicida do James Gunn, que é uma OBRA PRIMA IRRETOCÁVEL DA SÉTIMA ARTE e custou 167 milhões só deu 185 milhões de lucro! Tá…pandemia e HBO Max, claro…mas vamos voltar pro tema que eu já tô me perdendo aqui!

Imaginem a alegria do Rei vendo isso aqui.

Kirby saiu da revista do Jimmy Olsen e Forever People e Novos Deuses foram canceladas na edição 11. Apenas Senhor Milagre seguiu até a edição 18 com Kirby a frente (a revista voltaria em 1977, três anos após o encerramento dado por Kirby, com outra equipe criativa mas continuando a numeração durando até a edição 25). Kirby então criou The Demon, a revista do Etrigan, que durou apenas 16 edições; Omac, que durou apenas 8 edições; The Sandman, que durou apenas 6 edições; fez alguns primeiros números de títulos pouco conhecidos, fez algumas edições especiais e alguns números de títulos já existentes na editora. Sua criação mais duradoura na DC foi Kamandi: O Ultimo Garoto da Terra, que escreveu e desenhou até a edição 37 e das edição 38 a 40 se encarregou apenas dos desenhos enquanto Gerry Conway assumia o roteiro. A revista durou até a edição 57 mas com outras equipes criativas.

Frustrado por não conseguir a liberdade que achou que teria na DC, Kirby voltou pra Marvel em 1976 onde assumiu o título do Capitão América, em seguida criou Os Eternos, trabalhou no título do Pantera Negra, Surfista Prateado (personagem com o qual criou, em parceria com Stan Lee, o que é considerada a primeira Graphic Novel da Marvel, The Silver Surfer: The Ultimate Cosmic Experience de 1978) entre muitos outros. Deixou a Marvel novamente em 1978 e decidiu se dedicar a trabalhar com animação e concept art pra filmes. Ficou longe dos quadrinhos até 1980, quando fez alguns trabalhos junto a Pacific Comics. Mas foi em 1984 que a DC resolveu chamar Kirby novamente para dar um encerramento a saga dos Novos Deuses aproveitando que a editora revolvera reprintar a série original em seis edições especiais compilado duas edições originais cada. O problema é que DC queria dar SEU final pra trama, e não o que Kirby havia imaginado originalmente. E é aí que entra o primeiro final de Novos Deuses.

ARMAGETTO

Ou “Até Os Deuses Devem Morrer” começa com Órion invadindo Apokolips justamente no local chamado Armagetto. Na trama basicamente temos Órion sentando o braço em meio mundo e descobrindo que Darkseid está automatizando seu exército, com robôs humanóides, insetóides e até um tipo de tubarão voador que faz varreduras nos locais pra detectar intrusos de Nova Gênese. Enquanto isso, o próprio Darkseid se mostra meio avesso a essa automação já que, como um guerreiro, ele prefere a batalha corpo a corpo com o inimigo. Ironicamente, ao fim da história quando Órion chega a seu cóvil, o cara do “prefiro olhar nos olhos de meu inimigo enquanto o destruo com minhas prórpias mãos” se mete numa espécie de carrinho de motanha russa e foge com o rabinho entre as pernas.

A história é um fiapo e é completamente destoante do épico que Jack Kirby vinha construindo até a edição 11 e que seguia num crescendo. As imposições da DC ficam escancaradas no plot mais IMBECIL da história que consiste em uma maquina que revive pessoas criada por um dos cientistas de Darkseid. Com isso, personagens que morreram no decorrer das 11 edições originais e que, pelos planos de Kirby, PERMANECERIAM MORTOS E PONTO FINAL, começam a voltar a vida. Tudo porque, obviamente, a DC queria usar os personagens ad eternum.

É explicado que o que volta não é exatamente a pessoa que morreu, mas uma cópia que pode precisar de um tempo pra ser condicionada a agir como a versão original. A parte mais vergonhosa é quando Steppenwolf (sim, o vilão dos filmes da Liga) que havia sido morto pelo Pai Celestial e que era um sujeito cruel e de sangue frio volta com o intelecto de um vilão de desenho infantil de aventura dos anos 80, com direito a uma cena engraçadinha onde ele e seus soldados caem na água após Lightray (ou Metron, se preferir) ludibriar seus cães de montaria com ossos holograficos. Uma idiotice!

Também descobrimos que Tigra, a mãe de Órion, está viva e vive em cativeiro nos subterraneos de Apokolips. Mas essa trama é tão jogada e mal explorada que dura exatamente UMA página.

Obvimente Kirby não estava nem um pouco satisfeito com todas as imposições que a DC tinha feito e isso fica evidente em seus desenhos. Kirby é conhecido por não se apegar a anatomia perfeita e até a distorce ao ponto de causar estranhamento a quem tem contato com sua arte pela primeira vez. Mas o que o sujeito criou foi um estilo tão genial que muita gente tenta copiar até hoje e raramente conseguem chegar perto da grandiosidade que a arte dele tem. Em Armagetto fica claro a má vontade com que Kirby estava desenhando tudo aquilo. Seu desenho soa apressado e até meio displicente, existem erros grotescos de anatomia que não se parecem em nada com os exageros propositais caracterísicos de seu estilo. Não sei quanto disso também pode ser colocado na conta do arte finalista D. Bruce Berry, que substituia o fantástico Mike Royer na função. Fato é que a arte é a manifestação visível do descontentamento de Kirby.

Há certa altura Kirby não estava nem se dando mais ao trabalho de desenhar cenários.

O final da história soa como uma birra mais que justificada de Kirby e chega até a ser engraçada. A impressão que dá é que o Kirby pensou “Ah, então vocês querem que eu ressuscite esse monte de personagem que deveria permanecer morto? Tudo bem! Tudo bem…mas sabem quem vai morrer? O PROTAGONISTA DESSA PORRA!” e assim ele fez o Órion ser FUZILADO no final da história com direito a TRÊS TIROS NA CABEÇA E COM O CORPO CAINDO EM UM DOS POÇOS DE FOGO DE APOKOLIPS! Acho que o editor viu isso e disse “Ei, peraê! Na moral, Kirby! Ajeita isso daê!” e ele coloca um diálogo com Darkseid dizendo a um soldado “Será que ele morreu mesmo? Você viu o corpo? Será se seje?”.

E esse permaneceu como o final da saga dos Novos Deuses. Pelo menos até 1985, quando a edição Nª04 da revista DC Graphic Novel traria a saga de Órion aos holofotes mais uma vez. E assim nasceu…

THE HUNGER DOGS

Na trama a guerra entre Apokolips e Nova Gênese ruma pra um desfecho graças a nova invenção do cientista chefe de Darkseid. Um dispositivo chamado de Micromarcação que serve pra praticamente tudo, desde explosivos passando por ataque bacteriológico, controle do medo e até espionagem. Porém, Darkseid segue reticente com o uso da tecnologia cada vez maior em Apokolips. Basicamente Darkseid age como aquele senhor idoso que sente falta de celular com botão e TV de tubo e desconfia de celular com touch screen e TV com tela de LED.

Enquanto isso, descobrimos que, POR ALGUM MILAGRE, Órion segue vivo apesar de ter sido fuzilado por todo o tronco e TOMADO TRÊS FODENDO TIROS NA CABEÇA! Ele foi resgatado por Himon, personagem recorrente nas histórias do Senhor Milagre e um dos criadores das Caixas Maternas, que cuida de suas feridas e diz que Órion só está vivo porque nasceu com a Equação Vida, o oposto da Equação Anti-Vida (dãããã). A partir daí a trama segue com Órion invadindo Apokolips DE NOVO, Darkseid fugindo de carrinho DE NOVO e inclusive fugindo da população pobre revoltosa que vivia no Armagetto, conhecida como Hunger Dogs (Cães Famintos) por serem considerados a classe mais baixa de Apokolips. E EU CONCORDO! TEM QUE TIRAR GOVERNANTE FILHO DA PUTA DO PODER NA PORRADA MESMO! FICA A DICA, BRASIL!

A história soa como um Evil Dead 2! Pra quem nunca viu os filmes da série Evil Dead e não entendeu a analogia, eu vou explicar: No inicio dos nos 80 o jovem cineasta Sam Raimi queria produzir seu filme de terror. Sem o apoio de um grande estúdio, porque era um moleque recém formado na faculdade de cinema, Raimi saiu procurando financiamento com amigos e conhecidos que nada tinham a ver com cinema, como médicos e comerciantes. Levantou 90 mil dólares, fez um filme de baixo orçamento com o amigo Bruce Campbell como protagonista e uma cabana no meio do mato como cenário e também fez história quando o filme, que incialmente não foi um sucesso financeiro, foi exibido no Festival de Cannes de 1982 e atraiu a atenção de gente como Stephen King, que rasgou seda pro filme e isso fez a New Line Cinema distribuir o filme internacionalmente, fazendo-o lucrar 2,4 milhões mundialmente. Graças a isso uma sequência foi encomendada, só que dessa vez com um orçamento de 3,5 milhões. Aproveitando que o filme teria maior visibilidade, Sam Raimi decidiu começa-lo como um tipo de resumão/remake do primeiro mas com alguns elementos diferentes pra chegarem logo ao que seria a sequencia de fato. Ou seja, apesar de ter um 2 no título, o filme pode ser assistido sem que se tenha visto o 1 já que os minutos iniciais são basicamente uma grande recapitulação com mais dinheiro (e menos elenco) do primeiro.

E Hunger Dogs é quase isso. Apesar de ser uma sequencia, elementos são repetidos e mostrados ou em maior ou menos escala. Como Armagetto era uma história que se focava mais na ação, em Hunger Dogs temos o oposto. A primeira metade da história se reserva a contar o que está acontecendo em Apokolips e os planos de ataque a Nova Gênese, mostra como Nova Gênese reage a esses ataques, mostra como alguns personagens, como Lightray/Magtron reage ante a possível destruição dos Novos Deuses e mostra como Órion se recupera e até encontra o amor em meio ao caos. Só na segunda metade é que a correria começa e temos até algumas revelações bombásticas. Só tem um probleminha…

Antes de mais nada eu gostaria de deixar registrado que, onde quer que esteja, e creio que esteja em bom lugar, o Rei me perdoe pela comparação agressiva que vou fazer agora. Beira o desrespeito, eu sei, mas peço a compreensão de todos vocês também. Acontece que enquanto a arte volta a ter o selo Kirby de qualidade que havia se perdido em Armagetto, inclusive com Mike Royer voltando pra arte-final, o roteiro tem momentos tão confusos que parecem até…que Deus me perdoe…uma série de tweets escritos pelo Carluxo!

Sim, eu sei que é uma comparação agressiva e volto a pedir perdão por isso! Mas, de fato, o roteiro de Kirby tem MUITOS diálogos que ultrapassam o termo “confuso”! Sendo pobre e filho de uma senhora que já estrelou duas reportagens sobre o excesso de muriçocas no meu bairro, então falo isso com conhecimento de causa, então…sabem quando uma reportagem vai num bairro pobre e o pessoal tenta falar bonito e acaba falando um monte de coisa sem pé nem cabeça? É exatamente assim que soam vários diálogos e monólogos em Hunger Dogs! E eu realmente não sei o que aconteceu, pois em NENHUM dos títulos do Quato Mundo eu vi o Kirby escrever assim! Abaixo deixo algumas páginas com alguns desses momentos:

Eu juro que até agora não entendo o que diabos é exatamente a tal da Micromarcação!

A trama tem bons momentos SIM, como a revelação de quem é o cientista secreto do Darkseid e a estratégia extrema do Pai Celestial afim de atacar Apokolips que vinha atacando Nova Gênese de maneira violente e implacável. Mas tudo soa desperdiçado numa história que acaba ficando confusa, inclusive com a narrativa visual ficando confusa em alguns painéis mais elaborados do Kirby que meio que o forçaram a colocar setas indicando a ordem de leitura em páginas similares mais adiante.

É dito que esse TAMBÉM não era o final que Kirby queria contar. Pior ainda, as páginas iniciais de Hunger Dogs (especula-se que as 20 primeiras) eram as páginas que Kirby originalmente havia desenhado para o que viria a ser Armagetto antes da DC dizer “Não, não, não! Assim não!”. Isso fica evidente quando vemos o nome de D. Bruce Berry figurar ao lado do de Mike Royer como arte-finalista, já que Berry foi escolhido como arte-finalista de Kirby em Armagetto um ano antes.

Uma curiosidade está no fato de que apesar de Novos Deuses ter sido publicado pela Opera Graphica no Brasil no inicio dos anos 2000, Hunger Dogs só foi publicado aqui quando a Panini lançou Quarto Mundo pela linha Lendas do Universo DC já que a Opera Graphica parou em Hunger Dogs. O problema é que a revista DC Graphic Novel eram em formato de magazine, que é aquele formatão maior de A Espada Selvagem de Conan, por exemplo. Só que lendas do Universo DC tinha o formato americano tradicional e Hunger Dogs teve o tamanho de suas páginas reduzidas pra caber na edição da Panini resultando em páginas com baitas espaços em branco em cima e em baixo.

Outra curiosidade é que após a saída de Kirby da DC em 1975, os Novos Deuses tiveram suas aventuras continuadas por outros artistas em outras revistas. Eles voltaram primeiro em First Issue Special Nº13 de 1976, revista que servia pra tentar emplacar novas séries. Órion aparecia com um visual novo e GENERICASSO e os desenhos insosos e sem impacto (e, em alguns momentos, até mesmo feios) de Mike Vosburg não ajudavam. Pra piorar, Kalibak aparecia vivo (e mal desenhado) o que não casava com a cronologia original.

Em 1977 a revista seria retomada do número 12 com novos desenhista, entre eles Don Newton e Jim Starlin e durou até o número 19. Desnecessário dizer que as histórias não tinham uma fração sequer do impacto e da beleza das história escritas e desenhadas pelo Rei.

A DC tentaria emplacar os Novos Deuses sem Kirby de novo em 1978, quando publicou uma história dividida em duas partes nas edições Nº459 e Nº460 de Adventure Comics.

Aí sim, FINALMENTE a DC desistiu e só veríamos Novos Deuses de novo na editora quando Kirby voltasse pra produzir Armagetto e Hunger Dogs, obvimente ignorando TUDO que havia sido feito sem ele.

Eu realmente lamento muito a falta de visão da DC há época com o que Kirby estava criando. Se ele tivesse total liberdade e aval pra fazer como queria, teríamos uma das sagas mais completas dos quadrinhos e do próprio Kirby, com começo, meio e um apoteótico fim. Ao invés disso, ficamos com dois finais totalmente insatisfatórios, sobretudo Hunger Dogs que eu sempre desejei ler, principalmente depois de ler Amagetto e achar que a história dos Cães Famintos ajeitaria toda aquela bagunça e daria um cerre digno a saga dos Novos Deuses. Bem, como diriam os franceses “Sei lá, viu”.

PS: Os páginas com painéis pouco ortodoxos de Kirby as vezes ficavam confusas narrativamente mas não há como dizer que visualmente eram bem bonitas, lembrando muito vitrais de uma igreja. Foi então que me lembrei de um sujeito que desenha praticamente toda história desse jeito nos ultimos anos, o menino Jae Lee. Coincidência? Eu acho que não!

PS 2: Jack Kirby manjava DEMAIS de arte com colagem! Olha a lindeza dessa imagem abaixo! Quem me dera ter esse talento na hora de fazer meus trabalhos de colagem em cartolina na escola…