O Fim da Infância

“A raça humana não estava mais só”

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No início da Guerra Fria, durante os primeiros passos da corrida espacial, a Terra recebe a visita de naves extraterrestres. Posicionadas sobre as principais cidades do mundo e possuidoras de um tamanho colossal e tecnologia séculos a frente da que os humanos dispõe, seus tripulantes aguardam em silêncio pelo momento certo de agir. Após sete dias, o mundo toma conhecimento através de transmissões de rádio da voz de Karellen, que afirma ter sido nomeado para ser o supervisor da Terra. Karellen fala em um inglês impecável, dando a entender que n[os estamos sendo estudados a muito tempo.

Os alienígenas, apelidados pela população mundial como Senhores Supremos, iniciam uma série de imposições pacíficas, além de proporcionar ao homens um salto tecnológico jamais pensado. Pela primeira vez na história existe fartura para todos, doenças e outras misérias da humanidade são abandonadas, e, como consequência do fim dessas coisas, instituições como os governos, as religiões ou a busca incessante pelo capital desaparecem. O estado mundial, cuja base de governo se torna a ONU se inicia. Mas apesar de todo o bem, muitas pessoas (geralmente capitaneadas por líderes tornados obsoletos) conservam um pé atrás em relação aos Senhores Supremos.

Além da indignação pelo fato da maioria do mundo ter se tornado passiva e obediente aos novos senhores sem indagar, e de pregarem que a humanidade precisa evoluir a partir de sua própria iniciativa, a principal arma que grupos como a Liga da Liberdade utilizam contra os Senhores Supremos é o fato de eles não se revelarem ao mundo. Até mesmo o secretário geral da ONU, o único humano a falar diretamente com Karellen, o faz através de uma sala com alto falantes.  O argumento de Karellen é de que os humanos ainda possuem superstições e medos demais, e deixa no ar a ideia de que essa não é a primeira vez qua as duas raças se encontraram.

Mas com a pressão popular, uma decisão é tomada. Em cinquenta anos os Senhores Supremos descerão de suas naves para se exporem e interagirem com a humanidade. Esse tempo será mais que o suficiente para que a humanidade abandone concepções errôneas transmitidas por inúmeras gerações, e que a figura dos Senhores Supremos não cause uma comoção descabida, devido suas proporções enormes, asas, chifres e caudas pontiagudas. Esses parágrafos buscam resumir apenas o começo de uma história que se passa por mais de cem anos de interação entre a raça humana e os Senhores Supremos, nome um tanto irônico, pois eles mesmos obedecem a outros senhores.

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É difícil assumir uma atitude deveras vergonhosa, mas deve fazer um ano ou mais que comprei um “box” (não dá pra chamar 3 livros unidos por uma fita de papel de box) do Arthur C. Clarke e até mais ou menos uma semana ele ainda se encontrava embalado. Em minha defesa, o comprei junto com o box do Philip K. Dick e na época estava extremamente pilhado para ler “O Homem do Castelo Alto”. Mais livros foram chegando (alguns ainda embalados até hoje) e a prioridade foi mudando para a nova aquisição até a situação se tornar insuportável. E como sempre acontece comigo nesse tipo de situação, o arrependimento é imediato.

A maneira com que Clarke escreve aqui é clara e objetiva, e mesmo com a mudança constante de personagens através do tempo, o seu foco é muito mais nas pessoas que na tecnologia. Apesar das boas ações e da melhora substancial do mundo governado pelos Senhores Supremos, durante todo o livro existe um clima palpável de que algo não está certo, ou pelo menos tem algo muito importante e sério por vir, e isso torna a leitura bastante dinâmica e viciante, mesmo nos (poucos) pontos mais parados ou aparentemente fúteis da história.

Os capítulos finais conseguem ser belos, surpreendentes e tristes ao mesmo tempo, seja pelo destino da humanidade quanto pelo destino dos Senhores Supremos, que acabam se tornando o núcleo trágico da trama. Esse não é um livro de final ou interpretação aberta (que depende muitas vezes de outras leituras), ele possui uma linha de fatos muito bem definidas, mas mesmo assim a impressão que fica quando se chega na última página é que você poderia voltar no começo e ler tudo novamente sem sentir um pingo de cansaço.

A edição da Aleph (pra variar) é acima da média em relação a muita coisa encontrada por aí. Alardeada com orgulho (com uma certa dose de razão) por ser uma edição inédita no mundo, o livro conta também com o primeiro capítulo da livro reescrito pelo próprio autor em 1989 (lembrando que o texto original foi laçado em 1953) em uma tentativa de se fazer mais atual, porém a ideia acabou sendo abandonada. Quase nada restou do capítulo original, mas é um extra muito interessante. O outro extra é o conto Anjo da Guarda, publicado em 1950 na revista Famous Fantastic Mysteries, esse conto depois foi expandido para se tornar a primeira parte do livro. Diferente do primeiro extra, o texto aqui é quase integralmente idêntico ao que se encontra no livro, mesmo assim funciona muito bem como uma história isolada.

A arte da capa é um tanto sóbria, contrastando de maneira interessante com o rosa choque presente no interior da mesma. Esse design permanece nos outros dos livros do box (para constar, Encontro com Rama e As Pontes Para o Paraíso). Para quem se interessou, o preço mínimo encontrado na internet pelo livro é 25,70 golpinhos, o box, quando encontrado, sai por 70 reais. Uma preço justo por  um obra clássica, bem trabalhada pela editora e com um número bom de páginas.

Godoka
08/03/2017