Forrest Gump
O mundo está repleto do idiotas, mas só alguns se assumem como tais.
Forrest Gump é um idiota no sentido científico da palavra. Com um QI de quase 70, não havia escola regular disposta a aceitar o rapaz, então ele acabou indo para uma escola para doentes mentais, que não passava de um depósito para que os rejeitados da sociedade passassem parte do dia sob supervisão. Porém isso não impediu o jovem Forrest de ir para a faculdade, afinal, com seu porte avantajado (quase 2 metros de altura e uns 100 quilos) o garoto poderia muito bem se tornar um astro do futebol.
Quando infelizmente Forrest foi expulso da faculdade pelas baixas notas (com exceção de das notas máximas na disciplina Luz Intermediária, presente em grades de Física). Mas para Forrest havia outro lugar onde idiotas são sempre bem vindos: o exército. Apesar das ordens e da gritaria (parece que todo mundo no exército gosta de gritar), ser um soldado não parece tão ruim, pelo menos não até ter começado a Guerra do Vietnã. E a guerra, amigos, é um monte de merda. Pode parecer muito, mas esse é apenas o começo da jornada de Forrest, que foi soldado, músico, atleta, astronauta, mega empresário, tudo isso e mais um pouco mesmo sendo um idiota.
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Existem 3 filmes (além dos clássicos da Sessão da Tarde) que, se a piada de gastar de DVD de tanto assistir fosse real, eu teria que ter um estoque de cópias na minha casa. Eles são Coração Valente, Entrevista Com o Vampiro (me julguem) e Forrest Gump. Assisti pela primeira vez o filme responsável por garantir a Tom Hanks seu segundo Oscar ainda criança, e continuei assistindo fielmente pelo menos uma vez ao ano até a minha adolescência, gostando e entendendo as referências cada vez mais. Quando a Aleph anunciou a edição comemorativa de 30 anos do livro que deu origem ao filme, tive um misto de surpresa e necessidade.
A surpresa se deu devido a minha ignorância quanto a existência do livro, e a necessidade de conhecer a obra por trás de um dos meus filmes favoritos. Quando uma obra literária é adaptada para outra mídia (majoritariamente o cinema), é natural que ajam mudanças em ordem dos fatos da trama, seu desenvolvimento, ocultação e até mudanças na história, tudo para se adequar a uma nova linguagem, mas eu realmente não estava pronto pra avalanche de coisas diferentes.
Acho que é impossível falar sobre o livro sem tentar traçar um paralelo ao sucesso cinematográfico. O que temos aqui é uma obra completamente diferente, em alguns pontos até mesmo oposta que a que todos estávamos acostumados. Escrita de maneira coloquial e repleta de erros de grafia (intencionais, pois se trata do próprio Forrest narrando a sua história), Gump é um agente direto nos acontecimentos à sua volta, passando longe da sua versão alheia e passiva aos fatos e pessoas que temos na adaptação. E isso é só o começo.
A jornada de Forrest no livro é extensa e cheia de detalhes em um nível incapaz de ser transformada em um filme, mas o mais importante e marcante ponto impresso em cada página é o alto teor ácido das críticas à sociedade americana realizada pelo autor, Winston Groom. Seja por uma impressão direta do protagonista quanto pelo mesmo narrando fatos que presenciou de uma maneira imparcialmente obtusa, Groom dispara sobre muitos dos podres que permeia os alicerces do bastião do mundo livre: discriminação, racismo, machismo, líderes despreparados, guerra sem sentido, abuso de drogas (lícitas ou não), libertinagem sem consequência, violência urbana, a lista é grande.
Apesar do peso das críticas, a leitura consegue ser incrivelmente leve e divertida, repleta de passagens engraçadas ao nível de uma comédia pastelão. Esqueça também o fim poético igual ao filme, por mais que a capa e contracapa (além da capa dupla de proteção) sejam referências diretas à película, nada daquilo se encontra aqui, e arrisco dizer que da maneira original é bem melhor.
A edição da Aleph, pra variar, está de cair o queixo, em capa dura com relevo além da mencionada proteção dupla face. O interior do livro é em papel pólen de excelente qualidade, com o texto escrito em caracteres grandes e em azul escuro, que eu pensei de início que iria se tornar enjoativo, má é bem tranquilo de ler até mesmo por períodos prolongados. Como extras, alguns capítulos possuem ilustrações em página inteira ou dupla pelo quadrinista Rafael Coutinho, filho do gênio Laerte Coutinho. Ao final do livro, como de costume nessas edições, somos apresentados a um ensaio sobre o livro e seu paralelo com o filme por Isabelle Roblin, francesa, especializada em literatura contemporânea, de longe um dos melhores artigos nesse estilo de extra que já li.
Obviamente um livro com um tratamento gráfico desse nível não iria sair barato. No lançamento o preço estava na faixa de 80 golpinhos satânicos, e esse preço hoje caiu para 56 mangos (o menor encontrado sem muito esforço). Nesse preço ele acaba se tornando realmente um item para quem é fã, mas é uma bela aquisição tanto pela beleza quanto pela qualidade da obra e o choque quando você a compara com a adaptação.