Coringa – por Marcel trindade
Quando se olha muito tempo para o abismo, o abismo olha de volta pra você.
Quando eu li a notícia de que um filme do Coringa nos moldes de Taxi Driver e Touro Indomável estava em produção pelas mãos do diretor da trilogia Se Beber Não Case, eu não consegui me entender por algum tempo. Era um misto de “isso é muito estranho” com “isso pode ser interessante” com “e se for maravilhoso?”.
A perspectiva na época também era outra. A DC estava desmoronando nos cinemas, tentando morder os calcanhares da Marvel que seguia a passos gigantes ao evento que foi Vingadores: Ultimato no começo desse ano. O último grande êxito da DC (opinião deste narrador não-confiável) havia sido O Cavaleiro das Trevas, de 2008, e a justaposição entre o Coringa de Heath Ledger e o de Jared Leto me faz contorcer como o som de 2000 unhas arranhando um quadro.
Minha estranheza com o filme perdeu ainda mais espaço para a aprovação com o anúncio de Joaquin Phoenix no papel do palhaço. E já adianto que, assim como o filme, esse texto será em grande parte sobre ele. Joaquin tem muitos capítulos só pra ele no imaginário recente de Hollywood como fábula. Da tragédia de perder o irmão que era uma estrela em acensão e sair de sua sombra para ir se desvelando como um dos maiores atores de seu tempo, ele percorreu um grande caminho. Até mesmo a presepada Kaufmaniana que ele armou com irmão do Ben Affleck (nosso Batman anterior, aliás), rende uma aura de neo-Marlon Brando. Em vez de enviar uma índia pra receber um Oscar, ele se faz passar por louco em frente a David Letterman. Joaquin Phoenix tem um existência muito bem estudada, mas feroz e honesta quando alguém grita: AÇÃO!
Se você ainda não assistiu o filme, essa é a sua chance de não ler alguns SPOILERS. Portanto, se continuar daqui pra frente, não diga que não foi avisado.
Todd Phillips canaliza Martin Scorcese como nem mesmo Martin Scorcese consegue nos dias de hoje (posso morder a língua depois que O Irlandês estrear). A ambientação de Gotham City em Nova Iorque tem o odor da loção pós-barba barata do Travis Bickle (que confesso, procurei várias vezes na multidão). E o eco cíclico dos tempos em que vivemos torna essa ambientação ainda mais impactante, ainda mais relevante. Gotham está em colapso (alô, América) com os ânimos entre as classes esquentando. Nesse cenário, desponta como o salvador da pátria maravilhoso homem branco rico de terno Thomas Wayne. E aqui tá a genialidade sutil do Todd Philips: no nosso imaginário, Thomas Wayne é puro e casto, como todo mundo que morre sem a gente ter conhecido muito sobre o passado. Então prestem atenção na forma como ele é retratado, desde o começo.
A câmera está sempre em Arthur Fleck. Não há um momento em que ele não esteja lá. Então, obviamente, que sabemos tudo que se passa do ponto de vista dele. Tudo que vemos e todos que conhecemos são através do ponto de vista dele. Da verdade dele. Do discurso dele. Mas Arthur não é nem um pouco confiável, e nós sabemos disso. Do primeiro momento em que nos encontramos, é fácil perceber que tem algo errado com esse cara. Eu não consigo nem descrever o impacto que a primeira conversa dele com a assistente social.
Fleck é um fodido. Um coitado. Todo dia se veste de palhaço e vai pra rua tomar uma camaçada de pau da vida. Chegando em casa, ele toma sete remédios pra deixar de ser louco. Acha que funciona? Ele sofre de uma doença neurológica que faz com que ele ria desproporcionalmente e em desacordo com o que ele tá sentindo de verdade. Sabe gente que ri de nervoso? Pois é.
O filme vai montando, camada por camada, uma estrutura gigantesca sobre a qual ator/personagem se debruça pra contar a história. As cores do filme falam. No mundo de Fleck, tudo é amarelo e marrom. Sujo e doente. O apartamento (e a cama) que ele divide com a mãe cheiram a nicotina e ranço de mofo. As ruas onde ele trabalha são úmidas e fumacentas. Super-ratos (tô nem brincando) circulam pelos cantos da tela. Exceto quando ele liga a TV. O show de Murray Franklin é o oposto disso. As cores são vivas, as luzes são lisonjeiras com o apresentador e todas as suas piadas funcionam com a plateia. E é nessa dicotomia que o clima de tensão entre classes fica mais agudo. Fleck delira uma vida em outra situação, sob os mesmos holofotes que Murray, sem ver a barreira intransponível que existe para que ele alcance esse objetivo.
Como é de praxe nos filmes do diretor, a trilha sonora colore as cenas, tanto quanto as cores musicalizam a fotografia. Diversos momentos ganham uma grandeza emocional devido ao inteligente casamento entre som e imagem. Os figurinos e caracterizações estão impecáveis, gostaria de ver a Academia premiar algumas categorias técnicas porque perto de gigantes desse ano como Era Uma Vez em Hollywood, Coringa alcança a excelência.
Os pontos de virada no roteiro são um alívio: fazer com que Arthur Fleck fosse irmão de Bruce Wayne seria, na minha opinião, um erro colossal como o que vimos na franquia Espetacular Homem-Aranha, onde arremedos de conexões frouxas pra conectar a mitologia não levam a lugar algum. Em vez disso, a gangorra de reviravoltas experimentada por Arthur ecoa no espectador de forma verossímil. A insanidade de Arthur não é natural, ela é herdada. Não biologicamente, mas tragicamente, pelas monstruosidades de um “pecado original” dúbio. Penny Fleck (interpretada pela maravilhosa Frances Conroy) é o monstro em pele de santa, que não é nem monstro, nem santa. Já Thomas Wayne, é o santo em pele de monstro. Ele é honesto (o que não o torna menos filho da puta), mas Arthur o vê como um monstro. E por isso nós o vemos como um monstro também.
Em resumo, Coringa não vai agradar fãs de quadrinhos. Também não vai agradar aqueles que não vêem a nuance com qual o roteiro lida com a questão que vem incomodando público e crítica antes mesmo do lançamento do filme. Ao contrário das primeiras impressões, Coringa não é um filme sobre a glorificação da violência do homem branco americano. É um conto de advertência sobre os perigos da desigualdade e a falta de empatia. Sobre a necessidade de saúde mental integral como um bem, e sobre como a falta de dignidade pode tornar qualquer um que encara o abismo no abismo em si.
Publicado originalmente no Medium
Desenho do post by Marcel Trindade