Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?
Um título legal, mas Blade Runner é mais apropriado para um filme.
Rick Deckard é um homem quebrado em um mudo quebrado. A Guerra Mundial Terminus deixou como herança uma poeira radioativa que se precipita por todo o globo. A grande parte dos animais já se encontra extinta, os remanescentes são tratados como itens raros e comercializados por valores absurdos. Mas a poeira não afetou apenas os animais, alguns seres humanos em exposição prolongada à radiação tiveram suas mentes seriamente afetadas, esses são classificados pelo governo como Especiais e, além de serem vistos como cidadão de segunda classe pelos Normais, são proibidos de migrar para as colônias espaciais.
São poucos os humanos normais que, como Deckard, ficaram para trás. Ele mesmo fica tentando se enganar ao afirmar que alguém precisa ficar para trás, alguém precisa aposentar os andys que fogem para a Terra. Ser um caçador de recompensas não é a profissão mais nobre ou tranquila, mas cada andy aposentado significa mil dólares a mais, e quem sabe se ele juntar grana o suficiente um dia ele pode comprar um animal de verdade e finalmente encostar aquela maldita ovelha elétrica em um galpão. Os animais elétricos podem ser um motivo de vergonha para os seus possuidores, mas é melhor que não possuir animal nenhum e dá pra segurar as pontas por um tempo em relação aos vizinhos.
Em outro canto da cidade, J.R. Isidore está em seu precário apartamento, o único habitado de todo o prédio, se preparando para usar a sua caixa de empatia e compartilhar o sofrimento de Mercer, o novo salvador da humanidade. A caixa de empatia conecta os sentimentos de todos que a estão usando aquele momento, quando Mercer é alvejado com uma pedra, todos a sentem e até mesmo sangram no local supostamente atingido. Nesse momentos todos se sentem como parte de algo maior, até mesmo J.R. Isidore, classificado como Especial, chamado pejorativamente pelos Normais de cérebro de galinha.
Para Isidore apenas duas coisas importam: Mercer e o Seu emprego como motorista de uma empresa especializada na manutenção de animais elétricos, uma caminhão devidamente disfarçado para se parecer com uma ambulância de um hospital veterinário. Quando não está no trabalho, Isidore se isola da companhia de outras pessoas, prefere ficar assim, pelo menos até a chegada de uma outra moradora no prédio, uma jovem arredia e de comportamento estranho, como se não fosse daqui ou tivesse chegado de uma das colônias há pouco tempo.
Talvez esses dois homens nunca se encontrariam não fosse a oportunidade de ouro que caiu no colo de Deckard. Oito andys assassinaram seus donos e fugiram para a Terra, dois estão mortos mais um deles acabou quase matando o caçador de recompensas senior, e enquanto ele se recupera Deckard é destacado para abater os demais. Esses andys são do novo modelo Nexus-6, com uma capacidade cognitiva considerada muito superior a dos humanos mas ainda incapazes de sentir empatia como os seus criadores, o que torna o teste de empatia Voigt-Kampff útil por mais um tempo. Da Fundação Rosen, criadores do modelo Nexus-6 até o encontro com Isidore, Deckard tem um longo caminho de que o colocará à beira da insanidade, ou de pelo menos uma baita crise existencial.
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Depois de ler Realidades Adaptadas, coletânea de contos de Philip K Dick que já foram adaptados para a sétima arte, o choque ao ler este livro não foi dos maiores. Assim como no livro anterior, a trama presente nessas páginas é algo quase que completamente diferente das contrapartes cinematográficas. A obra aqui em questão é muito mais introspectiva, mais melancólica, cheia de personagens quebrados, confusos ou desesperados, longe das figuras másculas, sensuais e heroicas que conhecemos no clássico cinematográfico de Ridley Scott. Encarar o filme como uma releitura de personagens e conceitos presentes no livro talvez seja a melhor forma de não se decepcionar com nenhuma das duas obras, até porque ambas são encaradas como clássicos em sua respectivas mídias.
A escrita de Dick é profundamente imersiva, além de fundamentada nos desejos e sentimentos de seus protagonistas. Durante as primeiras páginas eu senti o mesmo estranhamento que tive no começo da Leitura de O Homem Do Castelo Alto, e assim como naquele livro o estranhamento logo se transforma em uma compulsão por saber o que vai acontecer na página seguinte. Foram pouco mais de 250 páginas lidas em três dias, e ter de deixar as cinquenta últimas páginas para se ler no dia seguinte não foi uma tarefa fácil.
A edição da Aleph, pra variar, está de parabéns. Longe de fazer o que vem fazendo com outros clássicos, com acabamento em capa dura, o tratamento aqui é mais simples e dono do seu próprio charme, além de boa qualidade. Papel pólen e arte de capa dando dor de cabeça, seguindo o padrão dos outros livros do autor lançados pela mesma, e nas páginas finais somos brindados por três extras bem interessantes. O primeiro é uma carta de Dick enviada para Jeff Walker parabenizando o produtor pelo trabalho em Blade Runner, escrita após o escritor ver um trecho do filme. O segundo extra a entrevista de Dick dada a Twilight Zone Magazine, a última entrevista dada pelo autor antes da sua morte em 1982, vítima de um AVC hemorrágico aos 53 anos, três meses antes da estreia de Blade Runner. E, por fim mas não menos importante, temos um posfácio escrito por Ronaldo Bressane que destrincha os pormenores da obra.
Esse livro encerra a trilogia comprada por mim há muito tempo atrás de livros do Philip K. Dick, comprada iclusive junto com outro box, só que com 3 livros de Arthur C. Clarke e que eu li e resenhei apenas um até hoje (shame on me). É bem difícil apontar uma obra como sendo a melhor entre as três, mas para o leitor que não conhece nada do autor e quer ter uma ideia, eu anda sugiro como primeiro passo a coletânea de contos Realidades Adaptadas, que atualmente é encontrado por 30 reais na internet. Só não vale ficar sem ler!