A Síndrome do Mangá Literário que NÃO É MANGÁ!
Entendeu o título não? Então senta aí que titio Hellbolha explica!
Desde que se popularizou de vez no resto do mundo lá pela metade dos anos 90, o mangá se tornou referência de narrativa visual pra vários artistas do mercado americano e brasileiro. E não que mangás e animes não fossem conhecidos do resto do mundo antes dos anos 90 ou que não houvessem artistas que seguissem o estilo visual, mas o “boom” mesmo pra geração na casa dos 30 anos foi nesse período e isso fica bem evidente se voltarmos um pouco no tempo e lembrarmos a quantidade de autores que começaram a desenhar mesclado o estilo dos comics com o dos mangás, sendo Joe Madureira o primeiro que vem a mente seguido por nomes como o brasileiro Roger Cruz, que tinha um traço muito similar ao do Madureira, entre tantos outros.
O Brasil seguiu essa mesma “escola Joe Madureira de American-mangá” e lá por volta de 1998 tínhamos Eduardo Francisco desenhado a versão nacional de Megaman, a heroína do mundo de Tormenta , Victory, e a adaptação de Mortal Kombat 4 com essa mesma mescla. Aliás, na revista Megaman tivemos vários artistas, mas apenas o Edu fugia da narrativa mangá e a edição que ele desenhou parecia mais algo saído da Image Comics tentando fazer mangá.
Os anos se passaram e os conceitos da “narrativa mangá” ficaram mais claros na cabeça da galera que agora entendiam que não precisavam apenas desenhar personagens com olhos gigantes, narizes em semi-triangulo ou cabelos espetados. Haviam nuances muito específicos, um estilo onde o desenho fala por si muita vezes, sem a necessidade de texto, algo completamente cinematográfico. Mas, apesar disso, muita gente continua insistindo no erro! E é dessa galera que vou falar hoje.
Essa ideia me surgiu ontem, enquanto vagava por uma feira de livros que acontecia aqui na cidade (e que foi HORROROSA em termos de material ofertados para venda) e vi uma coleção chamada “Mangá Shakespeare” publicada no Brasil pela editora Galera Record. Publicações adaptando grandes obras da literatura para o mangá não são novidade no Brasil, tendo em vista que a LP&M já publicou vários mangás em formato pocket adaptando vários livros de sucesso de vários autores, entre eles o próprio Shakespeare. A diferença é que a LP&M aparentemente lança mangás no sentido estrito da palavra, com desenhistas japoneses DE VERDADE e respeitando ao máximo a obra original, como esse:
Enquanto a Galera Record lança adaptações livres, desenhadas por artistas de várias partes do mundo MENOS DO JAPÃO o que resulta em coisas como isso:
Obviamente a obra é pensada pra alcançar um publico mais jovem, por isso esse visual de mangá genérico com rapazes com cara de integrantes de grupo de K-Pop e um visual meio chupinhado de obras consagradas. O problema é que o material da LP&M TAMBÉM É! E eles não precisaram deformar a coisa toda pra adaptar ao gosto da molecada, praticamente destruindo qualquer traço de respeitabilidade que a obra deveria passar pra um pai ou mãe a quem um vendedor possa oferecer isso! Imaginem o seguinte diálogo em uma loja de livros:
Pais: Olá, boa tarde! Gostaria de iniciar meu filho no mundo da literatura e queria que ele lesse Shakespeare, mas queria uma versão que não soasse tão engessada e que tornasse a experiência da leitura divertida e prazerosa para ele. Pode me ajudar?
Vendedor(a): Ora, mas é claro! Aliás, tenho aqui o material perfeito! Já leu “Macbeth”?
Pais: Oh, sim! Que livro maravilhoso!
Vendedor(a): Pois então….olha que sensacional ESSA VERSÃO EM MANGÁ!
Eu sempre via a capa desse “mangá” numa livraria aqui da cidade mas sempre achei ela tão horrorosa que nunca tinha parado pra ver do que se tratava. Pra mim, era a história de um dançarino de street dance que sabia ninjustu. Quando, um dia, parei, peguei e li o nome Mcbeth na capa meu horror triplicou! A coisa só piorou quando, pesquisando para esse post, comecei a ver artes internas da edição e do “belíssimo” trabalho do desenhista Robert Deas, que parece ser uma cópia descarada da série animada do Highlander dos anos 90. Deem uma olhada:
Os desenhos são feios? Honestamente, não! Não são lindos mas também não são espetaculares! O problema é que NADA TEM A VER COM MANGÁ! Nem narrativamente nem plasticamente! Parece mais aquelas adaptações em quadrinhos de desenhos animados americanos, tipo Batman Adventures que traziam histórias em quadrinhos baseadas na estética das série animada de 1992.
Mas um raio não cai duas vezes no mesmo lugar! E se em Mcbeth os desenhos, apesar de nada terem a ver com mangá, não são horríveis, o mesmo não se pode dize de Romeu e Julieta!
Apesar da desenhista Sonia Leong seguir o estilo mangá mais de perto com um traço muito próximo do shoujo, seus desenhos parecem mais algo feito por uma fanzineira iniciante e algumas páginas carregam nos erros de anatomia de um modo constrangedor. Confere:
O mesmo problema de “cara de fanzinão” aparece no já citado Hamlet. Deem uma olhadela:
E a coisa só piora quando damos uma olhada na adaptação de Júlio César, onde a palavra “mangá” perde completamente o sentido quando nos deparamos com um desenho sujo, pesado e que pouco lembra a arte da terrinha do sol nascente, parecendo mais um trabalho de um artista fill in da Vertigo que gostava muito de Moebius.
O único que tem um traço até bacana e dentro do que propõe é Ricardo III, que foi justamente a edição que me chamou a atenção pra essa coleção na feira de livros. Mas tem um pequeno problema. Deem uma olhada nessas imagens:
O traço do Patrick Warren é bem bacana, bonito até! O problema é que seu Ricardo Terceiro nada mais é que uma cruza do Orochimaru do Naruto com o Alucard do Hellsing.
“Poxa, Hellbolha, mas tu não acha que tá pegando um pouquinho pesado demais não? Afinal, são adaptações voltadas pra molecada! Não precisam ser um primor!” você pode estar protestando agora. E eu digo que até concordaria…não fosse o valor cobrado por cada edição! Cada volume da série Shakespeare Mangá custa em média R$42,90 em capa cartonada com a opção em capa dura de R$60,00. Claro que existem algumas variações de valores dependendo da edição, mas a mais baratea é justamente Ricardo III, que tem preço de capa de R$34,90. Agora, depois de verem tudo que lhe mostrei até aqui, alguém teria coragem de pagar mais de 30 golpinhos em uma publicação que se diz mangá mas não é e que traz artes dignas de fanzine de terceira na maioria de sua edições? É ÓBVIO QUE NÃO!
Se você vai me lançar um material baseado justamente na palavra “mangá” como aposta de sucesso pra cobrar os olhos da cara, parabéns! Você é um editor burro/ uma editora burra! Tenho a mais absoluta certeza de que essa série foi um verdadeiro flop, pois quem lê mangá obviamente tem material muito melhor pra onde mirar seu rico dinheirinho e quem lê quadrinhos em geral nem virou a cara pra ver esse troço! Ah, mas esse caso não se limita a série Mangá Shakespeare não! A galera cristã também apronta das suas! Ou será que você nunca passou na sessão religiosa de uma livraria e se deparou com as adaptações em mangá da Bíblia lançadas pela editora Vida Nova?
O engraçado dessa coleção é que os autores claramente se inspiraram em mangás e animes que gostavam para desenhar suas histórias e, como cada mangá parece ser feito por um autor (ou autores) diferentes, temos sempre uma edição com um visual diferente do outro. Olhando pelas capas as inspirações mais claras presentes são do grupo Clamp (Guerreiras Mágicas de Rayearth, RG Veda, X 1999, Sakura Card Captor) e de Cavaleiros do Zodíaco, no caso o traço e Shingo Araki para o anime é a inspiração e não o traço do Kurumada para o mangá pois Deus tava vendo esse mangá sendo produzido e não ia permitir um pecado desses.
Basicamente, pelo pouco que vi, o único “aspecto mangástico” está na tentativa de emular o traço e só! A narrativa não é dinâmica, se resume a painéis colocados na página apenas pra localizar os balões e o traço é até meio feinho em muitos momentos, além da colorização capengar, como nessa cena onde Jesus está falando e sua sombra está e pé atrás dele sem ter nenhuma superfície ali. A sombra simplesmente está…de pé! É quase o Stand de Jesus!
Eu não critico a ideia, afinal como o Japão não é um país onde o cristianismo predomina, dificilmente teríamos uma história Bíblica em formato mangá. A ultima vez que um japonês usou cristianismo em um mangá, o resultado foi esse:
O problema novamente reside no auto valor do produto. Cada edição em capa cartonada (mole, diga-se de passagem) e com 288 páginas em cores custa R$43,90. Certo que dado o público alvo e o nicho a tiragem não deve ter sido das maiores, afinal toda a trama já está na Bíblia em si, mas é preciso reconhecer que o valor não ajuda em nada.
Mas nem só de editoras pouco conhecidas vive a cópia vagabunda de mangá! A JBC, vejam só vocês, já publicou um mangá bíblico! Com o direto título de “A Bíblia em Mangá”, as duas edições pulicadas pela JBC adaptavam o Velho e o Novo Testamento. Escrita e desenhada pela dupla Siku e Akinsiku, ambos ingleses que tem trabalhos na revista 2000AD, A BÍblia em Mangá foi lançado em capa cartonada, papel jornal com 168 páginas ao preço de R$14,90 na edição correspondente ao Velho Testamento e com 96 páginas ao preço de R$9,90 na edição correspondente ao Novo Testamento.
Como já dito, os autores eram ingleses e a edição, apesar de carregar o nome “mangá” nada tinha a ver com os quadrinhos japoneses. Era só o Akinsiku tentado simplificar se traço ao máximo mas o resultado final parece mais algo puxado pra o desenho Mega XLR do que pra…QUALQUER MANGÁ!
Essas edições eu tenho, comprei na loja de um amigo em um saldão, acho que cada uma saiu por R$5,00 ou R$6,00, e devo confessar que gosto muito delas porque me ajudaram em um momento difícil! Não, não tem nada a ver com “Estava passando por momentos de dificuldade e encontrei conforto na palavra de Deus contida nas páginas desse mangá que não é mangá”, beeeem longe disso aliás. Acontece que eu tinha ido a uma viagem pra qual não queria e precisaria passar quase uma semana no local. Levei as edições e esquecia a chatice me divertindo horrores vendo Akinsiku desenhar todos os personagens bíblicos como se fossem super-heróis, sempre em poses dramáticas e épicas, com destaque para Moisés, o idoso fitness que usava uma túnica transparente e tinha o cabelo mais esvoaçante de toda Israel (ou seja lá onde ele vivia…).
As histórias também são bem corridas por motivos óbvios e assim como a maioria dos “mangás” citados aqui, quase não tem ritmo narrativo, sendo apenas um amontoado de painéis com balõezinhos. Pelo menos dos desenhos eu gosto bastante…
Enfim, esses são só alguns exemplos dessas edições capengas que tem aos montes por aí com desenhos mal estilizados e um monte de retícula aplicada pra disfarçar o traço feio se dizendo mangá. E se esses negócios já não davam muito certo antes que tínhamos poucos mangás originais em banca, que dirá hoje que as bancas estão coalhadas de mangás originais, muitos inclusive que ninguém pediu pra ler mas a JBC e a Panini parecem não está muito preocupadas com isso. Pelo menos até começar a ver encalhar, o que tem acontecido muito também devido aos preços absurdos como principal contribuinte. Mas o fato é esse: Você é editor/editora e está lendo isso? Parabéns, você é mais desocupado do que pensa! Mas caso esteja mesmo lendo isso e estiver pensando em publicar algum livro em versão mangá só que produzido fora do japão…faz isso não! Se poupe de dores de cabeça, pois isso tem 99,99% de chance de dar terrivelmente errado! E se você é leitor e estava pensando em ler algo dessa lista…francamente, viu…vá procurar algo melhor pra ler, menino/menina!
E vocês? Que publicação picareta nesse estilo vocês já viram, leram ou tem? Deixem aí nos comentários! E já deixa um lie no vídeo pra fortalecer o canal e..não, pera…