ROBOCOP: 33 ANOS!

No dia de hoje, há 33 anos, chegava às telonas brasileiras o filme que, mal sabia eu, mudaria minha vida para sempre.

Caricatura sarcástica da era Reagan, Robocop aplicou a estrutura de história de super-herói a um pano de fundo que satirizava a América dos anos 1980 com diversas camadas. Os ingredientes estavam todos lá: o medo de uma iminente guerra nuclear, advindo da Guerra Fria; os primeiros passos da tecnologia e da exploração espacial imaginados de maneira analógica, desastrosa e estapafúrdia; guerra no terceiro mundo; caos global instaurado; escassez de recursos naturais; e yuppies corruptos, cujo manual para atuar no mundo corporativo era A arte da guerra, de Sun Tzu, e que se consideravam verdadeiros guerreiros, num campo de batalha representado por um monopólio comercial — uma das grandes predições do roteiro.

Aí foi só aplicar tudo isso ao maior cenário da decadência urbana dos Estados Unidos: Detroit — outra predição que acertou em cheio —, cidade que então era um polo industrial automobilístico e hoje é uma cidade-fantasma, perfeita para acolher um enredo no qual um homem transforma-se em máquina.

Robocop, segundo o diretor, Paul Verhoeven, é “Satã matando Jesus, que depois retorna”. 
“Um Jesus americano que anda sobre a água e usa uma arma de fogo”.

Mas vamos rebobinar essa fita VHS um pouco.

Outubro de 1987. Não lembro a data exata, mas o IMDb diz que foi dia 8. Talvez tenha sido alguns dias depois… Meus pais deixaram o Luis, então com 7 anos de idade, na casa da avó, enquanto foram ao cinema. Na mesma noite, algumas horas depois, meu pai, empolgado, voltou falando: “Filho, vimos um filme que tu vai adorar! O cara é um policial e uns bandidos matam ele, aí ele é transformado em um robô, que é à prova de balas e atravessa paredes pra matar os vilões!”.

Ali, com a camada mais superficial — e única que o meu eu criança seria capaz de captar naquela época — das muitas que Robocop contém, ele capturou a atenção e fez com que as rodas da imaginação daquele menino, que era pequeno demais para poder ver o filme no cinema, permanecessem ativas até o momento em que ele chegou às locadoras e meu pai colocou-o em minhas mãos.

Quem se importa se era violento demais para uma criança? Essa parte era a mais divertida! Nós, crianças dos anos 80, crescemos sabendo separar muito bem a violência ficcional da real. E confesso que grande parte do valor sentimental está justamente no conteúdo ser impróprio, na subversão, no erguer do dedo médio para a censura, somados à euforia de finalmente ver acontecendo diante dos meus olhos todas as cenas que o sr. Luis sênior havia passado semanas descrevendo.

Nos 33 anos seguintes, eu vi Robocop o suficiente para ser capaz de recitar cada fala e descrever todas as cenas, em ordem.

Ok, agora vamos voltar mais um pouco…

No meio dos anos 80, Ed Neumeier, então executivo da Universal Pictures, estava cansado de seu emprego chato e teve uma ideia: escrever um roteiro sobre um policial robô e tentar vendê-lo. Convidou o amigo Michael Miner para escrever com ele. Michael tinha a ideia de uma história sobre um super policial que, depois de sofrer um acidente, era conectado a uma máquina que lhe daria poderes especiais.

Os dois juntaram suas forças e construíram um universo à volta desse super policial robô, que fazia piada com tudo o que eles viam de errado na sociedade americana da época, da adoração à propriedade privada a todos os efeitos nocivos da droga mais poderosa de todas: o capitalismo.
Com o roteiro em mãos, bateram na porta de algumas produtoras de cinema, até que a Orion, que pouco antes havia sido responsável por Terminator, abraçou a ideia e colocou-a nas mãos do produtor Jon Davison.

Faltava só um diretor com uma visão capaz de dar vida ao projeto. Davison ofereceu o roteiro ao holandês Paul Verhoeven, de cujos filmes era fã. A filmografia de Paul, entretanto, em nada remetia ao conteúdo do script. Ele nunca havia trabalhado em um sci-fi antes, gênero que acabou consagrando-o após Robocop, em filmes como Total recall e Starship troopers.

Verhoeven vinha enfrentando problemas para conseguir financiar seus filmes na Holanda, devido à natureza um tanto imprópria de seus roteiros, o que veio bem a calhar na hora de dar ideias para o conteúdo gráfico de Robocop. De início, ele recusou o projeto: achou o roteiro bobo e não tinha interesse em fazer um filme de ficção científica e ação. E não foi o único: a Orion comprou a ideia, mas achava o título idiota. Foi somente após inúmeras tentativas de encontrar um nome melhor que os executivos da empresa aceitaram que Robocop entregava exatamente o que precisavam.

Foi a esposa de Verhoeven, Martine, que o convenceu de que seria uma boa ideia aceitar o trabalho. Havia uma profundidade naquele texto que poderia ser explorada de inúmeras maneiras. Martine percebeu que Paul poderia dizer muito mais com Robocop do que apenas uma simples história de um policial robô. Para os produtores, seria uma oportunidade de criticar os Estados Unidos por olhos estrangeiros.

E foi o que o diretor fez. Levou às telas o mito do Jesus americano, que é crucificado de forma brutal e retorna armado, andando sobre a água. O cavaleiro de armadura cintilante, sem memória e sem identidade, produto de um progresso corrupto, que aos poucos recobra sua humanidade e se liberta do controle corporativo com tiros precisos. Muitos, muitos tiros.

Robocop é a história do policial Alex Murphy, o policial correto, pai de família, recém transferido a uma nova delegacia, em meio a uma iminente greve da força policial de Detroit. Polícia essa que é administrada pela mesma corporação que controla os principais meios de comunicação do país, o governo, as forças armadas e a indústria responsável por todos os bens de consumo: a Omni Consumer Products, ou simplesmente OCP.

A OCP controla tudo, de alimentação a vestuário, de saúde pública a moradia, e tem um propósito escuso: limpar as ruas de Detroit, eliminando os criminosos, delinquentes e até mesmo — por que não? — os menos afortunados, para poder construir sobre as ruínas daquele lugar um novo e brilhante futuro, uma nova cidade para a qual apenas os ricos e poderosos possuiriam ingresso: Delta City. É o sonho de todo o político reacionário que prefere sublimar o problema da desigualdade social em vez de resolvê-lo.

Para isso, um executivo da OCP — e grande vilão do filme —, chamado Dick Jones, tem um plano. Mas quando seu produto, o Enforcement Droid 209 (ED209, para os íntimos), falha miseravelmente na apresentação para o conselho de acionistas da empresa, transformando um dos executivos em carne moída — cobrindo de sangue a maquete de Delta City, estabelecendo uma bela metáfora — , Dick percebe que pode ter seu tapete puxado pela parcela mais jovem da diretoria. 

ED209 é um robô burro, que brinca com a ideia do cumprimento cego da lei. Um monstro assustador sem um pingo de humanidade, flexibilidade ou capacidade de ponderação (para os gaúchos que nunca viram o filme, ele é como um agente da EPTC). É o grande produto americano, que não funciona, mas vai custar barato para produzir, e tem um radiador em sua cara, cujo único propósito  é emular a mandíbula de um tubarão, tal qual seu idealizador.

Impulsionado pelo desastre da criação de Dick, o executivo Bob Morton (o ator Miguel Ferrer, que nos deixou este ano) apresenta seu projeto, um ciborgue que usa como base um membro da força policial derrubado em combate. Tudo o que Bob precisa é de um otário que tope servir de cobaia. E aí entra Alex Murphy.

Murphy é encurralado ao perseguir, junto com sua parceira, Lewis, uma gangue de assaltantes de banco liderada pelo demoníaco Clarence Bodicker (um Kurtwood Smith pré-That 70’s show), até hoje um dos mais terríveis — e incrivelmente interpretados — vilões que eu já vi. Bodicker e seus capangas esquartejam Murphy a tiros de escopeta, promovendo a crucificação metafórica e repleta de sangue que Verhoeven precisava para colocar em cena seu Jesus americano.

O policial então torna-se um produto da OCP, que apaga sua memória e o transforma em uma máquina invencível, com a arma de fogo mais legal que você verá em qualquer filme de ação. Um super-herói como nenhum outro, produto daquela Detroit distópica, e que paga à cidade na mesma moeda. Em sua primeira ronda, não sobram assaltante de loja de conveniência ou virilha de estuprador para contar a história.

Um ciborgue sem nome e sem identidade, que opera sob três diretrizes básicas — servir ao público, proteger os inocentes, cumprir a lei —, e uma quarta, secreta, inserida pelo lado corrupto da OCP, que o impede de agir contra qualquer membro da corporação. Ao tentar prender ou apontar sua arma a um executivo da empresa, Robocop entra em pane. Isso rende o melhor final de filme da história do cinema (e que eu, obviamente, não vou contar).

Porém, essa ausência de humanidade não dura muito. Lewis reconhece seu parceiro dentro da máquina, o que faz com que fragmentos de sua extinta memória venham à tona. Uma questão existencial é levantada então: até que ponto podemos suprimir, sufocar a essência humana?

Ao impedir um assalto, Robocop profere a frase “Vivo ou morto, você vem comigo”, antes usada por Murphy, e o criminoso o reconhece, dando a ele a peça inicial do quebra-cabeças que o leva a investigar o próprio assassinato e gradativamente recobrar sua humanidade à medida que se vinga de seus matadores, um a um.

Robocop passa de máquina a humano diante dos olhos do espectador. Quando o filme acaba, ele não é mais um produto da corrupta OCP. Ele é o ser humano que a máquina não conseguiu anular.

Filmada em Dallas, que tinha mais cara de “Detroit do futuro” do que a própria, a produção foi uma verdadeira distopia. Peter Weller, que interpretou Murphy, teve o traje de Robocop, cujo design se baseava nos robôs japoneses e no robô de Metropolis, de Fritz Lang, construído com base em sua estrutura corporal. Entretanto, ele levou muito tempo para ficar pronto, chegando ao set só no último minuto antes do início das filmagens. Weller, que havia preparado toda uma coreografia dos movimentos do ciborgue com a ajuda de um mímico, precisou rever tudo o que tinha praticado, pois não funcionava com a roupa, que levou 11 horas para ser colocada no primeiro dia.

Enquanto isso, os executivos do estúdio pressionavam Verhoeven para que o filme não tivesse tanto sangue e tanta violência gráfica, ao que esse respondia que ela era necessária para dar credibilidade à história, além de ser um recurso de humor. Alguns cortes foram feitos, mas há a versão do diretor, com todo o esplendor gore que o filme merece.

Robocop é o retrato de uma época. Uma fotografia sarcástica de um período e de um comportamento de uma nação, tirada através do olhar de quem vê de fora. Mas também é uma obra de arte que se mantém atual, fresca, que melhora a cada vez em que é assistida, e que ainda pode durar pelo menos mais 33 anos.