Desconstruindo Una

Um soco no estomago logo pela manhã.Estou escrevendo essa pequena resenha minutos após terminar de ler a graphic novel que dá titulo a este post. Lançando em 2016 pela Editora Nemo, Desconstruindo Una, escrita e desenhada pela Una em pessoa, traça um paralelo dos abusos e consequentes confusões que uma jovem Una passou durante sua pré-adolescência e adolescência e a incapacidade da policia de Yorkshire de prender um assassino que vitimou vária mulheres sendo que grande parte delas eram prostitutas. No entanto, houveram 3 vitimas que sobreviveram e deram seu depoimento, inclusive com a descrição detalhada das feições do sujeito, tal qual seu sotaque, proveniente de uma região muito especifica. A policia prontamente ignorou as 3, uma delas pelo simples fato de ser uma adolescente que, segundo as autoridades, foi um erro do assassino, já que ele só atacava prostitutas, mulheres que “teriam um motivo para que ele as matasse”. Sim, esse discurso de “ela fez por onde ser atacada” permeou todo esse caso, e foi justamente esse absurdo que motivou Una a escrever e desenhar sua obra.

Desconstruindo Una fala de como a misoginia é tóxica e, pior, as vezes é confundida com lógica e tratada com naturalidade. Joga na cara o leitor que o comportamento de culpar a vitima é muito mais comum do que nos propomos a enxergar. O caso do estripador de Yorkshire é o maior exemplo disso. Sendo que a maior parte de suas vitimas eram prostitutas, a policia parecia fazer pouco caso e não estar muito preocupada em resolver o caso, já que elas eram mulheres promíscuas e se arriscavam por vontade própria nessa vida desregrada, segundo eles e segundo muitas outras pessoas da comunidade. Quando a mulher não era prostituta, eles se preocupavam mais em procurar dados da vida pessoal das vitimas para poder uni-las ao time de “vitimas óbvias”, assim como as prostitutas, do que em investigar o caso em busca do assassino. Não era prostitua mas bebia muito? Vitima em potencial! Não era prostituta mas saia a noite pra bares sozinha? Vitima em potencial! Não era prostituta mas trabalhava a noite enquanto o marido ficava sozinho em casa? Vitima em potencial! Uma série de absurdos amontoados em uma pirâmide de misoginia e descaso.

Em paralelo a isso, Una nos mostra que as vitimas sobreviventes acabam por ser marginalizadas. Ela mesma foi vitima de abuso sexual mais de uma vez, sendo que na primeira ela ainda era uma criança por volta de seus 11/12 anos. A partir desse momento, ela nos mostra em momentos de beleza, simplicidade e abstratividade a confusão pela qual passou por não saber como reagir a tudo que lhe aconteceu. Ela não sabia em quem confiar, vivia momentos de medo intensos e evitava falar sobre o ocorrido. Ao enfrentar essa confusão sozinha, Una tomou decisões ruins e as pessoas não pareciam nada dispostas a orientá-la e, menos ainda, a ajudá-la. Com o tempo encontrou julgamento, dedos apontados, xingamentos gratuitos e tudo que de ruim poderia brotar de pessoas que ela nem conhecia, mas que faziam questão de julgar por julgar. E isso se repetiria por mais 3 ou 4 vezes em sua vida.

 

Além de tudo isso, Una ainda explora e nos mostra as dificuldades que as mulheres encontram em um mundo de julgamento quanto ao que seria “uma mulher direita”. Muitas vezes se vendo obrigadas a policiar seu comportamento e trancando seu verdadeiro “eu” em um local escuro dentro de si por aceitar imposições que uma sociedade ignorante jogou como verdades absolutas em seus colos muito cedo. Algumas conseguem se livrar disso, outras acham a carga pesada demais e preferem aceitar a pressão sentadas do que se erguer, muitas vezes alheias ao fato da possibilidade de poderem se ajudar afim de erguerem juntas o peso de seus colos.

Desconstruindo Una não é uma HQ tradicional. Você vai encontrar poucos quadros delimitando as páginas. Una prefere deixar seus desenho simples, mas imensamente eficazes, fluir pelas páginas, como se ela estivesse colocando tudo que a afligiu por 25 anos para fora da maneira mais poética possível. Em alguns momentos o texto ou o desenho não são explícitos quanto ao que está acontecendo, como no caso de alguns dos abusos que Una relata ter sofrido,  e é justamente a sutileza desses momentos que te fazem parar por alguns segundos, pensar e deduzir “minha nossa…aconteceu isso nessa parte!” comum certo espanto. Um recurso mais chocante do que se fosse didaticamente explicado.

Outro fator chocante são os dados que Una nos traz sobre o descaso com a questão do abuso sexual, sobretudo contra a mulher.  Os número são alarmantes e desesperadoramente reais e não parecem rumar pra uma mudança drástica em um futuro muito próximo. No entanto, ela também reitera que, ao contrário da época em que passou por tais abusos, hoje, com a conectividade, as mulheres já conseguem se comunicar e se apoiarem muito mais, além de dar uma bela de uma alfinetada em quem covardemente se esconde no anonimato afim de espalhar seus preconceitos, sua misoginia e sua burrice internet afora.

Desconstruindo Una não é apenas uma graphic novel, é um alerta, uma lição e, sobretudo, um tapa na nossa cara para nos policiarmos quanto ao comportamento indiferente que muitas vezes adotamos. Vi em alguns blogs títulos como “MULHERES, LEIAM ISSO!” e eu digo…HOMENS, leiam isso, por favor! As mulheres que lerem terão o fator identificação a seu favor, os homens que lerem terão a chance de abrir os olhos pra uma realidade que, muitas vezes, não se dão contam ou preferem ignorar. Uma obra que merece e precisa ser conhecida e reconhecida!

 

Nota: 10