São Jorge (de Danilo Beyruth)

Salve Jorge!

Após Gaius Aurelius Valerius Diocletianus se tornar imperador, ele tenta reerguer o já decadente império romano. Além de reformas tributárias e reestruturação militar, o imperador decide dividir o império entre oriente e ocidente. No entanto, um levante acontece e Lucius Domitius Domitianus, regente do Egito, declara independência do império. Diocletianus não fica satisfeito e ruma junto a seu exército, comandado pelo orgulhoso general Galerius, para uma batalha contra os insurgentes. No meio da batalha, que parecia trazer uma iminente derrota, um corajoso tribuno se ergue e muda a maré a favor dos romanos. Seu nome era Jorge e seu nome começou a figurar em histórias de heroísmo por toda Roma. Porém, além da coragem, Jorge tinha outra característica que o destacava entre os soldados romanos: era cristão.

Sendo um império de crença politeísta, o imperador Diocletianus acha que os cristãos são uma das manchas no atual império romano e decide que vai abafar a fé deles afim de retomar a gl´ória dos deuses. Mas se vê em uma situação dificil, já que seu atual e celebrado herói, o tribuno Jorge, é da fé cristã e isso pode inflamar ainda mais os crentes de Cristo. Eis que Galerius tem uma ideia, mandar Jorge para uma missão menor onde ficaria longe por um tempo enquanto a “limpeza” seria feita em roma. Para tal, Galerius incube Jorge de ir até a cidade de Cyrene onde relatos de que um dragão tem espalhado morte e destruição pelo local circulam. Jorge vai, estranhando estar sozinho e incrédulo nas histórias do tal dragão. Mal sabe ele que o perigo é maior do que ele imagina, tanto em Cyrene quanto em Roma.

E assim começa São Jorge, HQ de Danilo Beyruth que reconta a história do famoso santo com uma roupagem mais realista. Aqui, o dragão não é, de fato, um dragão, mas um crocodilo gigante e nem por isso menos ameaçador e amedrontador. Isso é muito bacana porque casa perfeitamente com os exageros dos tempos em que só havia a palavra falada e escrita para descrever coisas novas, como na idade média, onde era comum atribuir o fóssil de um mamute ao esqueleto de um dragão devido a falta de conhecimento de tal animal. Jorge é um homem estudado e viajado e, portanto, sabe o que é um crocodilo, mas o povo simples dos campos de Cyrene na Grécia não faziam ideia do que era tal criatura, então um dragão era o mais comum para que o descrevessem. Aliás, vou deixar abaixo este vídeo que AMO DE TODO CORAÇÃO com as descrições de animais comuns pra nós hoje mas que as pessoas não conheciam na idade média e tentavam descrever de forma hilária através de desenhos!

Aliás, é preciso destacar o jeito que Beyruth trata os ataques do bichão. Com aquele clima de filme de terror dos anos 80, com muitos momentos lembrando o clássico “Alligator: O Jacré Gigante”, filme que fazia a alegria e tocava o terror na garotada dos anos 80/90 no Cinema em Casa do SBT (aliás, referências a filmes é o que não falta em São Jorge e é uma delicia notar cada uma, mas falo disso mais adiante). Os ataques são violentos, brutais e o clima de perigo é quase palpável. Destaque pra uma cena em que um soldado romano acha ossadas debaixo d’água e temos um close no olho do bicho se abrindo. Cinema de terror puro!

Um pescador pega um estranho peixe nas águas habitadas pelo “dragão”.

A luta de Jorge contra o jacarezão é o ponto alto da HQ. Dinâmica, aflitiva, violenta e maravilhosamente desenhada, o combate é uma aula de narrativa visual além de ser incrivelmente empolgante! O bicho é tão duro na queda que a luta toma parte dos dois volumes que compõe a série. E o mais bacana é que não se resume a um cara trocando sopapos com um jacaré superdesenvolvido. Como soldado, Jorge é um baita estrategista e sempre procura os meios mais efetivos de lutar. É maravilhoso vê-lo usar a cabeça pra vencer o combate com um adversário tão incomum. Isso sem falar que, apesar dos pesares, ele também demonstra compaixão e consciência de que se trata de um animal, que não há realmente maldade ali, apenas instinto de sobrevivência. Reflexo de sua bondade e fé cristã.

Mas não se enganem! A HQ não reserva apenas esse combate! Na realidade, ela já abre com uma baita batalha campal ultra-violenta e que faria o Evandro se contorcer na cadeira, já que temos pelo menos uns dois closes em espadas atravessados globos oculares (Evandro, o nosso ranger vermelho e host no podcast da casa, o Bem Amiches, tem agonia a qualquer coisa tocando olhos, caso você não saiba). As cenas são tão brutais quanto belas, tudo graças arte espetacular de Beyruth.

Agora quanto as referências cinematográficas, temos várias! Algumas podem até não ter sido intencionais ou são apenas coisas da minha cabeça, mas todas são ótimas. A primeira é um momento durante a batalha entre Jorge e crocodilo onde o bichão…FICA DE PÉ! Essa cena automaticamente me remeteu ao famoso crocodilo que comeu a mão do Capitão Gancho e que no filme Hook, de Steven Spielberg, é exposto de pé com o relógio na boca.

Tamb´ém é impossível não notar a similaridade da abordagem de São Jorge com dois grandes épicos do cinema, Ben-Hur e Gladiador. Ambos os filmes contam a história de um soldado romano que acaba sendo traído pelas pessoas a quem servia. No caso de Gladiador temos o impeto guerreiro de Jorge fazendo eco com o de Maximus Decimus Meridius. Já quanto a Ben-Hur temos o fator religião pesar contra o protagonista, além de sua fé inabalável. Mas até aí é mais fácil dizer que a história original de São Jorge inspirou Ben-Hur, já que o personagem do épico do romance de Lew Wallace e, posteriormente, do filme de William Wyler é ficticio.

Em paralelo com Ben-Hur também é possível citar o modo como Beyruth decidiu tratar a cristandade de Jorge. No filme dos anos 1960, Ben-Hur tem sua fé mas ela não é a força motriz do filme, a vingança o é. E, em dado momento, o personagem encontra Jesus, de fato, mas isso também não se estende demais no longa. Em São Jorge Beyruth segue pelo mesmo caminho. A HQ não é panfletária e não usa a religião de Jorge como muleta. Ela foca na perseguição ao cristianismo e a mensagem de que é preciso respeitar a crença de todos. Ao contrário de Ben-Hur, Jorge não se encontra com Cristo, pois a trama se passa quase 300 anos após sua morte. No entanto, na reta final da história, temos um encontro de Jorge com uma entidade maligna, mas a trama deixa em aberto para a interpretação do leitor. O leitor é que decide se o que Jorge vê é uma alucinação ou algo real. E isso foi muito bem trabalhado.

No final, o que fica é a mensagem de que é importante lutar pela sua crença e pelo direito de tê-la, seja ela qual for ( contanto que não fira o direito de ninguém, é importante frisar isso nesses tempos em que maluco defende nazismo como se fosse algo inofensivo). Ah, e a história até encerra com um milagre atribuído a Jorge! Mas nada sobrenatural, é um milagre advindo da inspiração e da bondade. Um belo final, diga-se de passagem.

São Jorge é uma baita de uma HQ que demorei tanto pra ler inteira porque só consegui o número 1 recentemente (tinha o número 2 desde 2019/2020, não lembro exatamente). Uma HQ que recomendo fortemente e que meu deu aquela vontade de ler mais coisa do Danilo Beyruth, coisa que prontamente o fiz e em breve tem mais post sobre. Se achar as duas edições, pegue sem medo. O único defeito not´ável dela é que ela acaba!

Nota: 9,0