Review Sanguinário: Shigurui

Sangue, suor, tripas, braços, pernas, queixos, olhos e as vezes um pouquinho de lágrimas, se der tempo…

Durante a era Edo o daimyo Tokugawa Tadanaga organizou um torneio entre samurais. Tais torneios eram comuns e serviam não apenas como diversão mas também como uma espécie de showcase para que outros senhores feudais convidados pudessem apreciar as habilidades dos samurais competidores e contratar os que lhes agradassem para tornarem-se instrutores de esgrima em seus dojos, guardas costas ou mesmo soldados. Todas as lutas eram travadas com armas de madeira e eram terminantemente proibidos golpes que deixassem lesões permanentes ou fossem letais. Mas Tadanaga era conhecido por ter uma mente perturbada, violenta e doentia…Seu torneio seria levado a cabo com armas reais e mortes não apenas eram permitidas como encorajadas. Tal torneio foi visto como algo grotesco e criminoso. Porém ninguém estava preparado para os dois primeiros competidores a entrar naquela arena da morte. De um lado, Fujiki Gennosuke, um jovem samurai sem o braço esquerdo. Do outro, Irako Seigen, um jovem e belo samurai de traços delicados, porém cego e manco de um dos pés graças a um enorme corte que o dividia ao meio quase em sua totalidade. Como esse combate poderia ser permitido? E porque Fujiki e Seigen parecem ter uma rivalidade já estabelecida? Isso é algo que vamos descobrir no decorrer dessa sangrenta trama.

Shigurui, que nos EUA recebeu o ACERTADÍSSIMO subtítulo de “Death Frenzy” (Frenesi da Morte), é um mangá em 15 volumes escrito e desenhado por Takayuki Yamaguchi e é uma adaptação do primeiro dos 12 capítulos que compoem o livro Suruga-jo Gozen Jiai, escrito por Norio Nanjo. No livro, cada capítulo narra as lutas desse torneio e as histórias por trás de cada lutador, porém o mangá escolheu a dupla que trava o primeiro embate e se concentra em nos contar como Fujiki e Seigen chegaram até ali e as causas de suas deficiências físicas.

A primeira vez que tive contato com Shigurui foi por volta de 2010/2011 graças ao anime de 12 episódios produzidos pela Madhouse. Assisti apenas um episódio e o clima pesado me levou a colocá-lo no “vou ver depois” e nunca mais voltei a ele. Recentemente decidi ler Vagabond de Takehiko Inoue e após acabar o volume 38 fiquei avido por mais conteúdo “samuraizistico”. Foi então que lembrei de Shigurui e decidi ir atrás do mangá, já que o anime não cobre nem metade da trama total. E,amiguinhos e amiguinhas…eu não estava totalmente preparado pro que me esperava.

Um ponto importante a se destacar no mangá é que ele já começa “dando spoiler” do final do campeonato. Sim, apesar de não se focar no campeonato, como eu achei que faria, ele começa com as consequências dele, mostrando que Tadanaga acabou sendo condenado por essa barbárie que resultou em muitas mortes, feridos e poucos sobreviventes e foi executado. Porém a graça de Shigurui não está em chegar ao destino mas em ver o que aconteceu pelo caminho. E, ainda assim, o mangá guarda MUITAS surpresas e vários momentos de cair o queixo.

A trama vai girar em torno de Fujiki Gennosuke, que seria o nosso “herói” por assim dizer, e Irako Seigen, que seria nosso “vilão”. Coloquei os termos entre aspas porque em muitos momentos a trama anda numa área cinza mostrando que a “honra” e o “senso de lealdade e dever” de um samurai pode levá-lo a fazer coisas horríveis e que aparentes atos de maldade podem guardar fortes justificativas por trás. Fujiki é um dos mais talentosos discípulos de Iwamoto Kogan, mestre do Kogan-Ryuu um estilo de esgrima diferente onde os movimentos mais letais são executados com a espada sendo segurada entre os dedos indicador e médio. Sua devoção ao mestre Kogan é total pois este o tirou de uma vida de camponês, onde era desprezado até pelos pais e o tornou um nobre e respeitado samurai temido pelas suas letais habilidades. Ele é o favorito a se casar com a filha de Kogan, a jovem e bela Mei, e a levar a escola adiante.

Já Seigen é um samurai vaidoso, não apenas por sua bela aparência, mas por suas habilidades letais. Um dia chega ao dojo Kogan-Ryuu e exige enfrentar o velho Iwamoto Kogan. Antes, porém, ele precisa derrotar dois discípulos do mestre, o primeiro é justamente Fujiki, a quem derrota quebrando-lhe dois dedos da mão. O problema é que o segundo é o mais forte discípulo do dojo, o grandalhão Ushimata Gonzaemon que usa uma espada de madeira gigante que mais parecem remos. Seigen se vê encurralado e entra em pânico ao descobrir uma das regras do Kogan-Ryu: Um duelo com espadas de madeira jamais deve ser letal, porém obrigatoriamente deve-se decepar alguma parte do rosto do adversário, seja nariz, orelhas, olhos, queixo, o que for para que por onde passe, a força do estilo e a fama do dojo seja conhecida através de sua deformidade. Seigen desiste de uma maneira não muito digna e revela que gostaria de se tornar discípulo do dojo.Por ter derrotado Fujiki, demonstrando grande habilidade e potencial, é aceito. E as desventuras do dojo Kogan-Ryuu começam a partir dessa decisão…

As ambições de Seigen vão se tornando cada vez maiores, assim como suas habilidades na espada. E para Iwamoto Kogan, que sofre de demência senil e só fica lúcido durante meio dia em determinadas estações do ano, a única coisa que importa é que Mie se case com seu discípulo mais forte (Gonzaemon está descartado por motivos revelados mais adiante que são de um nível de fanatismo e maluquice inacreditáveis) e lhe dê um filho. E com a chegada de Seigen, Fujiki passa a ter um forte rival aos olhos do velho mestre (se dependesse de Mie, ela se casaria com Fujiki ONTEM, mas as mulheres não tinham voz naquela época).Mas essa ambição de Seigen que elevou-o ao olhos do seu mestre também será sua ruína e é essa ambição que vai arrastar todos pra um verdadeiro frenesi da morte.

Shigurui se enquadra num tipo muito particular de história que eu gosto muito, que o “NINGUÉM está seguro! Nem o protagonista”. TODO MUNDO pode morrer a qualquer momento e muita gente VAI morrer, desde personagens detestáveis até seus favoritos. E se não morrer, inteiro não vai sair! Vide a primeira aparição de Fujiki e Seigen no mangá/anime. E, aliás,se tem uma coisa que parece que o Takayuki Yamaguchi parece sentir a necessidade de caprichar é nas cenas de morte. Sério, nada é escondido! Muito pelo contrário, as vezes temos closes em cenas extremamente gore, seja pra mostrar a precisão de um corte limpo, seja pra mostrar a destruição de um golpe com uma arma pesada. O negócio é tão absurdamente violento que o anime, exibido nas madrugadas japonesas para o publico adulto, sofre algumas censuras com algumas cenas sendo escurecidas pra evitar mostrar tripas expostas, por exemplo.

Outra coisa que o Takayuki insiste em mostrar, e isso eu confesso que me incomoda por soar gratuíto demais, é nudez feminina. Sim, os homens aparecem nus, na verdade bem mais que as mulheres, mas no caso dos homens é pra mostrar que eles estavam usando os músculos para tal golpe e então temos um tipo de ‘visão de raio-x” mostrando embaixo da roupa. Mas no caso das mulheres, às vezes é pra mostrar elas reagindo a uma intenção assassina ou algo assim e às vezes é…do nada! Só pra mostrar “peitchinhos” de graça.

Ah, e eu quase esqueço as escatologias. Em dado momento aparece um personagem que tem uma forma grotesca e, por isso, sempre viveu como um animal. Então, quando ele aparece na trama, Takayuki acha de bom tom mostrar ele defecando. Achei isso de uma gratuidade desnecessária, mas em Shigurui a palavra “limite” quase não encontra lugar.

Agora falemos da arte de Takayuki Yamaguchi. Se você não tiver o conhecimento de que o mangá começou a ser publicado em 2003, muito facilmente você pode achar que está lendo uma obra dos anos 80. Isso se deve ao fato de Takayuki ter um traço mais “retrô”, desenhando seus personagens com grandes olhos pouco comuns nos mangás do século 21. Aliás, não só os olhos são grandes como todos os personagens tem o que podem ser chamadas de “cabeças de caixa d’água”. Todo mundo parece um ET de kimono! Quando a Madhouse adaptou pro anime, deu uma modificada brusca nesses exageros e deixou todo mundo com traços mais “humanos” e alguns personagens acabaram até visualmente bem diferentes de sua contraparte de papel mas, ainda assim, facilmente reconhecíveis. Foi o caso do Seigen, por exemplo.

Mas isso quer dizer que o traço é feio? Não! É bem diferente, só isso! Mas Takayuka tem um traço detalhado, dando uma atenção especial as espadas, que sempre são belíssimas, e os cenários, que são maravilhosos. Sua narrativa também é ótima e ele sempre carrega as páginas com uma tensão cortante. As cenas de duelo são brutais, como já deu pra notar do tanto que falei que o mangá é violento, e, sem medo de errar, digo que o mangá possui um dos combates mais tensos que já li!

É o segundo dos 3 embates entre Fujiki e Seigen e você já sabe o que vai acontecer quando ele começa, só que a construção do caminho até esse momento cria um clima quase de desespero. Você torce pra o que você sabe que vai acontecer não aconteça, mesmo sabendo que VAI acontecer! Talvez eu esteja soando meio confuso e repetitivo…mas é isso! Só lendo pra saber o que quero dizer.

Enquanto gosto de Blade: A Lâmina do Imortal por ser uma obra com mais liberdade e que mostra samurais com extremo desprezo pelos costumes da época que disfarçavam a subserviência dos pobres aos mais ricos chamando de “hierarquia” e dos samurais ao seus senhores chamando de “honra”, Shigurui bota o dedo na ferida e gira, já que muito do que é mostrado no livro que deu origem ao mangá tem bases em documentos e escritos reais da época, mostrando toda a podridão de um período onde você poderia ser morto impunemente só pelo fato de existir e incomodar alguém que tenha dinheiro ou um cargo elevado ou precisava se submeter a fazer coisas hediondas só pra manter um emprego. Pensando bem, hoje em dia essas coisas não mudaram muito…

Enfim, este é Shigurui, um mangá cru, violento e que prende do inicio ao fim. Uma das melhores obras do gênero “gente de roupão se matando com facão” que já li e que me deixou curioso pra saber como foram os demais combates que só estão no livro. Livro que, aliás, foi lançado na Espanha em 2014 pela editora Quaterni que mudou o título original, Suruga-jo Gozen Jiai, para “Shigurui: El Torneo del Castillo Sumpu” obviamente graças ao lançamento do anime. Mas, no Brasil, nem sinal. Se bem que no Brasil nem sinal do mangá também. A falecida divisão de mangás da Nova Sampa que publicou um monte de título desinteressante (alguns HORROROSOS mesmo) podia ter trazido esse título no lugar de tanta tralha que chegou nas bancas e encalhou. Bem, procurem internet afora que vocês acham completinho facilmente. E, pra Shigurui é…

Nota : 8,0

O Anime (pelo menos o que vi até aqui) :

Não falei muito do anime porque comecei a ver assim que terminei de ler e vi apenas 6 dos 12 episódios até agora. É uma boa adaptação mas tem muitos momentos que soam um pouco “soltos” já que o mangá tem sempre uma narração em off pra explicar algumas coisas e o anime nem sempre se dá ao trabalho de fazer o mesmo. A escolha da Madhouse de jogar um tipo de ‘névoa negra em widescreen” em alguns momentos também pode causar estranhamento, bem como a música que é toda baseada em músicas instrumentais japonesas de época e mantras budistas. No mais é uma boa introdução a série, já que como eu disse anteriormente, não cobre nem metade do mangá, se focando mais no arco inicial de ascenção e queda do Seigen.

É fácil de achar, inclusive tem completo no YouTube em boa qualidade. Mas cuidado com as traduções! Nessa versão do YouTube tem alguns erros grotescos de tradução que se você não leu o mangá pode deixar passar batido mas se você leu vai ver que muitos momentos ficam completamente sem sentido. Pra dar um exemplo, no primeiro episódio, na luta entre o Seigen e o Gonzaemon, em determinado momento os alunos de Kogan-Ryuu que estão assistindo começam a descrever a regra de deformar o adversário pra que ele sirva de exemplo para outros e demonstração das capacidades do estilo Kougan-Ryuu. Vou falar de cabeça mas o texto original seria mais ou menos assim:

– Treinos não são feitos para matar o adversário. Porém o Kougan-Ryuu sempre irá “embelezar” seu adversário. Arranque um nariz,uma orelha, um olho. Deixe que levem essas marcas como exemplo de nossa força.

Aí o fansub, por alguma razão, traduziu assim:

-Treinos não são feitos para matar o adversário. Pare! Você não poder fazer isso! Não deve matar ele!

E, sim, as vezes a frase é gigante e a tradução mete uma frase curta na legenda. Então procurem bem. Vou terminar de ver a série mas daria uma nota 8,0 também porque a Madhouse faz bonito. E nem sempre ela fazia, apesar de toda a adoração e reverência que seu nome evoca, vejam os animes da Marvel que ela produziu, sobretudo Blade, e notem que até os grandes podem fazer mal feito de vez em quando.