Review Doce: Candyman

Doces para um doce.

Todo mundo tem pelo menos um filme que nunca assistiu inteiro na vida, que lembra apenas de partes aleatórias dele mas que sempre ouve falar do quanto ele é bom, do quanto ele é um clássico de seu gênero e do quanto ele marcou uma geração. Eu tive isso com muitos filmes, os principais foram as trilogias Star Wars e Indiana Jones, dos quais tinha memórias com versões muito peculiares em minha memória onde acontecimentos se misturavam e Obin-Wan e Darth Vader não duelavam como dois idosos batendo bengalas na fila de uma lotérica. Mas isso foi sanado há muitos anos atrás, quando finalmente vi os filmes em DVD. Porém , essa sensação perdurou até poucos dias atrás com outro filme, um dos clássicos de terror com um dos personagens mais facilmente reconhecíveis do cinema do gênero: Candyman ( O Mistério de Candyman no Brasil).

Em minha cabeça, graças aos flashes que eu lembrava dos pedaços que tinha visto na Globo, SBT ou Band (não lembro bem, mas tenho quase certeza que foram na Band na maioria das vezes), o filme era estrelado por um Freddy Krueger genérico que matava pessoas a rodo. Nada de diferente, nada de original. Mas eis que recentemente me ponho a ouvir um podcast sobre o primeiro filme e de acordo com o avançar do episódio e pela descrição da película, percebi que o filme não era NADA como eu me lembrava. Então resolvi pausar o podcast e ir ver o filme. E essa foi a decisão mais acertada que poderia ter tomado, pois o filme que eu tinha em minha mente era composto unicamente pelas cenas de morte das duas sequencias, muito inferiores ao original, enquanto que o original…bem, falarei dele mais adiante. Mas, antes, uma pequena sinopse.

Hellen Lyle é uma estudante universitária que trabalha em um projeto sobre lendas urbanas até que acaba se deparando com uma desconhecida porém muito popular em Cabrini Greens, um conjunto habitacional pobre cuja a vizinhança é majoritariamente negra localizado em Chicago. A lenda de Candyman evoca medo nos moradores de Cabrini Greens pois muitas mortes violentas no local são atribuídas a ele. Cética, Hellen decide se aprofundar na origem da lenda e saber até que ponto a fantasia serve de disfarce pra realidade da violência urbana que permeia o local. Os problemas começam quando Hellen começa a vivenciar situações onde sua sanidade fica em cheque. Será Candyman real ou será que Hellen está descobrindo um lado sombrio em si mesma que jamais cogitou existir?

Sim, como podem ver pela sinopse, o filme tem mais conotações de terror psicológico que de slasher movie, como eu erroneamente acreditava já que suas sequencias seguiram essa vertente desavergonhadamente. O filme é uma adaptação do conto The Forbidden escrito por Clive Barker, autor de sucessos literários que viraram (não tão) sucessos do cinema e da TV, como Hellraiser: Renascido do Inferno, Livros de Sangue e Raça das Trevas. Obviamente existem muitas diferenças, tendo em conta que o conto tem pouco mais de 60 páginas, porém o filme consegue trazer novos e pertinentes elementos pra trama sendo a critica social pesada a mais notável.

Duas realidades distintas convergindo.

Hellen é a tipica pessoa branca de boa classe social que ignora a realidade dos bairros pobres. Quando se encontra com a realidade de Cabrini Greens, ela a encara com o fascínio de quem encontrou uma civilização desconhecida. A pobreza e a violência eram algo distante de sua vivência até então e a desigualdade social e racial era algo que ela parecia ignorar completamente. Essa discrepância de realidade começa se mostrando quando ela descobre que o apartamento onde mora, luxuoso e com grandes janelas com vista pra cidade, originalmente foi concebido como um prédio de um conjunto habitacional (chamados de “projects”) exatamente igual aos prédios pobres que visita em Cabrini Greens. Mais adiante ela precisa lidar com a policia. Em um primeiro momento, como uma vitima, onde recebe atenção e é muito bem tratada por todos. Em um segundo momento como suspeita, onde é tratada com desprezo e indiferença pelos mesmos agentes da lei que a trataram tão bem outrora. Pra ela, toda essa faceta brutal da lei era desconhecida. Pra comunidade negra e pobre, era só mais um terça-feira.

Quanto ao personagem título do filme, vivido magistralmente por Tony Todd, ele transita por um mistro de assustador e sedutor. Sempre com uma voz profunda e que reverbera na alma e um figurino que lembra um cafetão, sem falar no seu icônico gancho no lugar de sua mão amputada, Candyman também transita entre ser um espirito da vingança e um simbolo do que é uma lenda. Lendas são histórias que misturam acontecimentos reais com fantasia afim de se criar novas narrativas. E é exatamente isso que o Candyman do filme é, uma lenda urbana que cresceu em uma comunidade e que não admite que ninguém que venha de fora duvide dele. Sua força vem do acreditar, e os moradores de Cabrini Greens acreditam nele, fazem culto em seu nome através de pichações e alguns até adotam seu visual para incutir o medo, como pode ser visto em uma cena com um chefe de gangue que usa um gancho como arma.

Obviamente temos o elemento do “clássico monstro de terror” com a lenda de que se você repetir seu nome na frente do espelho cinco vezes, ele aparece e te mata com seu gancho, te rasgando da virilha até a garganta. É assustador? É! E rende umas cenas BEM perturbadoras. Mas se você pensar no conceito geral, acaba parecendo um trabalho de meio período. “Ah, eu sou uma lenda urbana que aparece sempre que alguém ousa duvidar de mim. Mas também apareço pra matar adolescentes que repetem meu nome cinco vezes na frente do espelho! Só assim pra pagar as contas na situação atual da economia…”.

O filme tem momentos VIOLENTÍSSIMOS! Tá, talvez não pros padrões de hoje em dia, onde o gore as vezes rola desvairadamente em alguns filmes. Mas pros padrões de 1992, o filme é BRUTAL! E boa parte da violência não está apenas nas cenas, mas no contexto também. O filme pega pesadíssimo nesse aspecto, e a cena mais memorável e perturbadora é uma na metade do filme quando um menino de uns 7 anos explica pra Hellen algo que aconteceu com outro menino de mesma idade com problemas mentais em um banheiro publico. Segundo a história que o garoto narra pra Hellen, esse menino com problemas mentais tinha ido ao mercado com a mãe e precisava ir ao banheiro. Como haviam banheiros públicos em frente ao mercado, ela o deixou ir sozinho. Alguns minutos depois gritos são ouvidos no banheiro e uma multidão se junta na frente dele mas ninguém tem coragem de entrar, até que um homem resolve tomar coragem e entra apenas pra sair de lá segundo depois, tremendo e em choque. Acontece que alguém castrou o menino e jogou seus genitais no vaso sanitário e deu descarga. O que o homem encontrou ao entrar no banheiro foi o menino deitado numa poça de sangue gigante segurando o ferimento e gritando em dor e pânico. O diretor Bernard Rose não poupa o expectador fazendo a câmera entrar pelo banheiro lentamente, mostrando o garoto em agonia no chão e seguindo pelo brutal rastro de sangue até a cabine com o vaso sanitário. É uma das cenas mais brutais e chocantes que já vi em um filme e só se torna mais chocante quando você se dá conta que não foi o Candyman quem o fez, mas algum bandido local movido pela maldade pura e simples.

Em contraponto, o filme precisa seguir o mote do slasher tradicional e nos traz o pacote com sustinhos e mortes pra mostrar que o Candyman é mal feito um pica-pau. Como eu já disse, essa parte não me agrada tanto, mas também não ofende tanto. Destaque pra morte do médico que duvida de Hellen e a faz provar seu ponto repetindo novamente o nome de Candyman cinco vezes na frente do espelho bem diante dele. O jeito que o ator reage ao ataque é tão realista que você chega a sentir a dor…

Um elemento que dá o clima perfeito ao filme é a trilha sonora. Composta por Philip Glass, a música, composta basicamente de piano e vocais sinistros, é linda e assustadora ao mesmo tempo. Unidas aos planos aéreos de Bernard Rose, temos belíssimas composições onde música e imagem casam com beleza absurda. A abertura do filme, uma longa tomada aérea de uma rodovia, já da o tom do que será a música durante todo o filme. Ah, um fato curioso: Philip Glass compôs a trilha achando que Candyman seria um filme de arte e ficou PUTASSO quando descobriu que se tratava de um filme de terror. Obviamente isso mudou quando percebeu que seus temas se tornaram um dos grandes destaques do filme e se tornaram clássicos na história do cinema.

O filme termina de um jeito meio “Hollywoodiesco” demais e perde a chance de terminar em uma cena onde a loucura de Hellen seria atestada. Mas tudo bem, o final não chega a ser ruim e ainda reforça a máxima do filme de que uma lenda vive enquanto alguém falar dela. O novo filme, que tem Jordan Peele como produtor e deveria ter sido lançado ano passado mas foi reagendado para agosto desse ano, vai ignorar as duas sequencias do original e vai trabalhar novamente essa questão da sanidade e do que é real ou não, pelo trailer, de forma mais incisiva ainda. Agora eu fiquei ansioso pra ver porque parece muito promissor!

Enfim, Candyman é um baita filme com um clima sombrio, questionamentos pertinentes, critica social assertiva e que merece ser visto, seja você fã de terror ou não.

NOTA: 9,0

O Conto

Sim, resolvi aproveitar o andor e fazer uma mini resenha do conto, que li no dia seguinte após ver o filme. O conto difere em alguns pontos. O primeiro é não se passar nos EUA mas na Inglaterra e o conjunto habitacional que Hellen visita pra fazer um estudo sobre a linguagem presente nas pichações, e não sobre lendas urbanas como no filme, não é majoritariamente ocupado por negros. No conto de Clive Barker apesar da questão racial não estar presente, a questão da desigualdade social está e o distanciamento da violência e como isso a naturaliza para algumas pessoas, também. É como as pessoas que assistem programas pinga sangue, por exemplo. Elas se chocam com a violência ou apenas tem uma fascinação mórbida pela morte já que podem observá-la sem se preocupar com suas consequências ou com sua vitimas graças ao distanciamento que a TV garante?

O personagem de Candyman não aparece de fato no conto até seu final, onde se revela uma criatura demoníaca que existe apenas porque acreditam nele. Um “produto da fé sombria”, por assim dizer. Não tem o background humano do filme e também não é um homem negro. Na verdade é descrita como uma criatura de pele amarelada e olhos verdes, estando mais próximo a um Babadook com icterícia, por assim dizer. Ah, mas o gancho e as abelhas continuam lá.

O conto também tem momentos bem violentos e chocantes, sobretudo o final, que é similar ao do filme com a diferença de ter um pequeno elemento extremamente macabro pra levar a história a sua conclusão.

Como supracitado, o conto não contém o elemento da questão racial como no longa. Acontece que Clive Barker escreveu o conto em 1986 mas também escreveu o roteiro do filme junto com o diretor Bernard Rose. O que trouxe esse novo direcionamento a história foi o famoso caso de Rodney King, um motorista de táxi negro que foi brutalmente espancado por policiais em 1991 na cidade de Los Angeles. Três dos policiais que espancaram Rodney foram levados a julgamento ma apenas um foi condenado, os outros dois foram inocentados, o que gerou uma onde de revolta na comunidade negra local e levou a conflitos com a policia que duraram seis dias e resultaram na morte de 63 pessoas e em mais de duas mil feridas. Após isso, um novo julgamento levou quatro policiais aos tribunais, sendo 2 condenados e 2 inocentados dessa vez.

Apesar de ter esse elemento a menos, o conto se sai um pouco melhor que o filme no que tange a natureza do personagem título. Como no conto não existe o ” Fator Bloody Mary/ Loira do Banheiro”, o personagem dá mais força a questão da lenda que vive enquanto for contada e seu teor sobrenatural é muito mais forte.

Nota: 9,5

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