Obrigado, Miura!

O ano era 2006. Um adolescente Diogo, com então 15-16 anos, era fascinado por duas coisas: animes e RPGs.

Um dia, um amigo de Diogo, que à época também compartilhava do mesmo fascínio por animes e RPGs, apareceu com dois DVDs sem qualquer marcação dizendo: “assiste que você não vai se arrepender”. Os DVDs em questão tinham gravados os 25 episódios de Denpu Senki Berserk de 1998. Foi paixão a primeira vista já na abertura.

https://www.youtube.com/watch?v=ocQ6PDiP014

Eu estava acostumado aos animes shonen convencionais, então Berserk foi o primeiro anime com conteúdo mais adulto que eu tive contato e, olha, o choque foi grande.

Mesmo que naquela época muito da profundidade da obra tenha passado batido por minha versão adolescente (por motivos de, bom, eu era um adolescente), em alguma camada eu percebi que a obra tinha muito a contar. Nunca assisti uma animação com tamanho afinco, nunca me senti tão oprimido ao acompanhar uma história.

Após o tremendo impacto com o final da animação (acredito que todos aqui que tenham visto ou lido o momento do Eclipse lembram exatamente quão chocante ele é), meu único pensamento era: isso não pode acabar assim, não é possível! Fui atrás de mais e foi então que descobri que o anime tinha uma versão mangá desenhada e escrita por um tal de Kentaro Miura, e que lá a história ia além do Eclipse.

Como todo adolescente sem dinheiro e com acesso a internet na época, fui atrás dos scans do mangá. Passei uma noite inteira numa lan house só para baixar tudo o que eu encontrasse de Berserk para ler e finalmente saciar minha vontade de ver a continuidade da história. O esforço valeu à pena!

No primeiro capítulo tive mais um choque. Acho que até aquele momento eu nunca tinha visto um mangá com traços tão bonitos e detalhados como aquele. E pior, o traço usado no anime chega a ser feio comparado a obra original!

Cada página lida era uma catarse. Tenham em mente que eu era alguém que basicamente estava pulando do mangá de Cavaleiros do Zodíaco para Berserk. Desenhos com anatomia correta eram novidade (hauhahuhahuahu).

A partir daí posso dizer que comecei a amadurecer ao mesmo tempo em que Berserk foi saindo. Mais e mais a profundidade daquela obra foi ficando mais clara para mim, se antes meu eu adolescente foi impactado pela violência crua da obra, minha versão jovem adulto foi finalmente percebendo que a história não era só isso. Para além da violência pura e simples, Berserk tenta transmitir como a humanidade pode ser podre, egoísta, mesquinha. Que algumas pessoas podem cair nesse fluxo de podridão apenas para sobreviver e outros para alcançar a glória. Mas mesmo no meio de toda essa podridão ainda pode haver humanidade!

Além de ver o que era um desenhista excelente, também vi o que era um roteirista de mão cheia. Berserk me deu a oportunidade de acompanhar personagens extremamente cativantes e complexos, trama hipnotizante, reviravoltas que se fossem físicas te faria virar do avesso, enfim, um roteiro digno de uma literatura da melhor qualidade. Talvez tenha sido com Berserk que tenha surgido em mim a vontade de um dia escrever minha própria obra.

A produção de Berserk teve muitas idas e vindas, chegando a ficar anos parada. Cansei de ficar impaciente com a dúvida de quando sairia um novo capítulo ou até SE sairia. Eu fiquei refém dessa obra, AINDA SOU refém dessa obra.

Com o tempo o tom de Berserk foi mudando. Se antes era uma Fantasia Sombria, pesada, quase opressiva, em seus momentos mais recentes já puxava mais para a Alta Fantasia mais leve, com direito a bruxinhas e ilha de elfos. Para muitos foi uma mudança muito drástica, que descaracterizou demais a obra. Eu prefiro pensar que o Miura queria dar uma chance ao Guts, uma chance de recuperar sua humanidade, de sair do ciclo de violência em que o personagem se meteu. Ou Guts mudava ou corria o risco dele chegar ao ponto de ficar insano e virar um dos monstros que ele cansou de trucidar nas páginas do mangá. Passei a concordar com essa mudança, Guts sofreu demais, um fim trágico para alguém que nasceu e viveu na tragédia era demais. O personagem necessitava começar a encontrar algum final com paz!

O grande problema é que jamais saberemos se Guts encontrará essa paz. Escrevo esse texto no dia 20/05/2021, data em que foi anunciada a morte de Kentaro Miura aos 54 anos de idade por uma dissecção na aorta no último dia 06.

Todas essas palavras mal escritas foram apenas para dizer “obrigado, Miura”. Obrigado por fazer parte da minha vida. Obrigado por ajudar no meu amadurecimento como fã de anime/mangá. Obrigado por ser influência para outros autores em outras tantas obras que eu gosto. Tenha seu merecido descanço do guerreiro!

Berserk vinha sendo publicado desde 1989 na revista Young Animal da editora Hakusensha do Japão, no Brasil pela Panini. Até o falecimento do Miura, já contava com 40 volumes publicados. Se você nunca leu, leia. Independente de ser agora oficialmente uma obra inacabada, Berserk ainda merece ser lido pelo peso que adquiriu dentro do mundo dos mangás e fora dele. E claro, para celebrar o talento monstruoso de Kentaro Miura.

Churrumino
20/05/2021