Nós

Ou “Quando você toma um porradão nas ideias”.

D-503 é um home feliz em uma sociedade perfeita, galgada na beleza exata da matemática. Ele é um dos principais nomes envolvidos na construção da Integral, a primeira nave humana projetada para alcançar o espaço e possíveis outras civilizações. A nave transportará uma série de escritos, conhecimentos de uma sociedade avançada para alienígenas bárbaros, e por esse propósito que D-503 passou a escrever  um diário que será colocado junto a outras cargas na Integral.

A grande revolução após a guerra séculos atrás originou a sociedade perfeita. A individualidade foi completamente abolida, assim como qualquer sentimento possessivo e conflitante, assim como os abomináveis conceitos de amor ou família. Claro, ainda existe a hora pessoal, o período do dia onde todos são livres para fazerem o que bem entenderem, onde muitos acionam as cortinas automática de seus apartamentos com paredes de vidro (para facilitar o trabalho dos espiões).

Um dia, durante um passeio coletivo, D-503 entra em contato com uma mulher que lhe chama atenção, seu nome é I-330. I é parece diferente das outras pessoas, como se algo selvagem ardesse por baixo daqueles olhos dissimulados. D, um homem da ciência, logo se vê arrebatado por algo que não consegue explicar, e quando I-330 lhe revela ser integrante de uma célula terrorista, o matemático se vê dividido entre suas antigas convicções e compromisso com o Estado Único e sua obsessão por uma mulher realmente livre e seus ideais.

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Eis um livro maldito. O autor russo Ievguêni Zamiátin escreveu Nós em 1920, porém o livro só foi publicado em 1924, ainda assim pela primeira vez nos Estados Unidos, e é bom lembrar que ascensão de Stálin como governante da URSS e sua consolidação como figura central se deu no período se iniciou após a morte de Lênin em 1924. Porém Zamiátin, que foi membro do partido bolchevique, foi sistematicamente perseguido, preso e exilado por conta do caráter político de suas obras.

Além de sustentar o título de primeira grande obra literária de distopia, Nós assume um caráter profético em relação ao país natal do autor. Na época de sua escrita (e até mesmo lançamento), o caráter militarista, opressivo e ditatorial do governo de Stálin não era nem mesmo suposição, visto que esse não era o posicionamento de Lênin, principal nome do partido e cuja palavra para a maioria dos membros era a palavra final. Zamiátin sem querer acabou escrevendo com anos de antecedência um dos melhores retratos do desvirtuamento ideológico pós revolução.

Além de toda a narrativa impressionante do livro, o que acaba sendo mais impactante são suas páginas finais, que são nada mais que uma carta do autor escrita em 1031 e endereçada à Stálin. Na carta, Zamiátin além de se defender das acusações e alegar estar sendo perseguido ideologicamente, sugere a Stálin que a sua pena seja comutada para exílio e solicita que sua esposa tenha permissão de acompanhá-lo, o que acabou sendo permitido. Dada a aproximação das ideias de nós coma ideologia de Trotsky (desafeto declarado de Stálin), o exílio foi uma pena leve.

Pra variar, o trabalho da Aleph é de encher os olhos. Além da grande sacada de mudar a fonte do texto a partir de um momento crucial da narrativa, mostrando a mudança de pensamento do personagem, a mesma ideia foi utilizada na parte externa, com o contraste da capa com caracteres retos e sóbrios e uma contracapa anarquizada. Enfim, além de uma obra fantástica, um lindo objeto de decoração. O livro originalmente custava 53 reais, mas no momento está sendo vendido a 30 na Amazon, um ótimo preço pra um livro excelente.

Godoka
28/03/2018