Forever People N°03

Uma história dos anos 70 que parece ter sido produzida HOJE.

Jack  Kirby é fantástico! O sujeito criou metade dos personagens do universo Marvel em seus primórdios, depois foi pra DC e criou todo um novo universo lá. E foi lá também onde, pelo menos pra mim, se provou um escritor MUITO MELHOR que Stan Lee. Aliás, muitos são os relatos de que ele metia o bedelho nos roteiros do Lee na Marvel e por isso haviam histórias tão memoráveis da dupla, e eu não duvido nada. Existe um porrilhão de histórias escritas por Stan Lee nos anos 60 e 70 que eu não consigo ler de uma tacada só hoje em dia por serem arrastadas, com textos excessivos e redundantes e com plots repetitivos. O Homem-Aranha dele com o Romitão é um exemplo disso, muita gente idolatra essa fase mas temos que admitir que as histórias se resumem a “Tia May ficou doente de novo, preciso vencer esse vilão pra conseguir chegar na Farmácia do Trabalhado do Brasil pra pegar a dipirona dela”.

As história do Quarteto Fantástico são as que mais tem cara de “Kirby escreveu isso aqui, hein…”

Kirby não! Ele criava universos gigantes, personagens estranhos e cativantes, mundos e maquinários fantásticos, sua histórias eram menos textuais e muito mais ágeis pra época, muito provavelmente por ter a noção de que seus desenhos podiam muito bem contar a história sem o auxilo de longos recordatórios explicando o que já estava sendo mostrado. Mas não é (só) pra rasgar seda pro Kirby que estou escrevendo esse post (mas se quiser ler mais rasgação de seda E COM PROVAS de que ele merece, leia ISTO). Acontece que estou lendo Lendas do Universo DC: Quarto Mundo que, FINALMENTE, a Panini lançou ( e mordendo a língua pra muita coisa que eu disse AQUI, menos a parte do preço que continua MUITO alto) e eis que chego ao volume 2 da Panini e me deparo com O Povo da Eternidade (Forever People) N°03 e uma das histórias mais atemporais que já li na vida!

Pra quem não conhece o Povo da Eternidade, eles são um grupo de 5 jovens que vem da Supercidade, localizada em Nova Gênese, lar dos Novos Deuses, e que carregam uma caixa materna que os permite se unir em um só corpo e se tornar o Homem-Infinito, mais ou menos como um Capitão Planeta, só que sem a parte da natureza e muito mais porradeiro. O Povo da Eternidade vem a Terra inicialmente em busca de sua quinta integrante, a Belos Sonhos, uma jovem capaz de criar ilusões nas mentes das pessoas. Ela havia sido sequestrada por Darkseid que veio a Terra procurar pela Equação Antivida, uma força misteriosa capaz de anular a vontade própria dos seres humanos e controlá-los como uma grande mente coletiva ao bel prazer de quem a possuir. E a Equação Antivida, aparentemente, está escondida na mente de um humano, apenas esperando para ser ou despertada ou encontrada. Trocando em miúdos com fatos do mundo real, é como se Hitler fosse possuidor dela e todos os nazistas fossem os controlados pela Equação Antivida que ele possuía.

Na terceira edição de O Povo da Eternidade, somos apresentados a Godfrey Glorioso, sim, aquele mesmo que criou toda a quizumba em Lendas graças a seu poder de manipular as pessoas através de sua voz. Aqui ele tem um tipo de igreja itinerante, que parece mais um circo que se muda de cidade pra cidade (pra ter uma ideia de como isso funciona, procure o filme Fé Demais Não Cheira Bem, Leap of Faith no original, com Steve Martin que mostra exatamente como essas igrejas funcionavam) onde prega que a vida é algo perigoso por não trazer certezas e que a Antivida é a resposta. Em sua igreja, Darkseid é o simbolo supremo da fé, o salvador que concedeu a graça do conhecimento da Antivida para os mortais. Agora Godfrey irá enviar seu exército de fanáticos, os Justificadores, para caçarem aqueles que não concordarem com ele e suas crenças afim de ou convertê-los ou exterminá-los.

Agora, acompanhe comigo:

1- Tem um líder que prega algo absurdo chamado “Antivida” e diz que a vida não vale nada e, mesmo com esse discurso sem pé nem cabeça, angaria milhares de seguidores.

2- Temos um grupo de fanáticos que seguem e defendem esse líder cegamente a ponto de usarem uniformezinhos e se acharem no direito de fazer o que quiserem, inclusive MATAR, só porque seu “amado líder” disse que era direito deles “defenderem suas famílias” contra os que não acreditam no seu discurso.

3- O líder usa uma entidade maior, uma figura “divina porém vingativa” para defender seu discurso e mostrar que é abençoado e escolhido para varrer o mundo dos que pensam diferente.

Sim, essa trama já se repetiu MUITO no transcorrer da história da humanidade e, mais uma vez, cito o nazismo como referência direta e que muito provavelmente Kirby tenha usado como base aqui. Mas, me respondam…esse cenário não parece assustadoramente com o Brasil atual? Pessoas seguindo um líder que profere absurdo atrás de absurdo e não só acredita como o defende ferrenhamente? Pessoas que se acham no direito de usar a força pra calar quem discordar delas e do seu líder? Gente que, na verdade, já era horrível em essência mas com aval de uma força politica maior mais o aval religioso agora se sentem a vontade pra demonstrar sua verdadeira natureza? Só faltava o uniforme dos Justificadores ser uma camisa da seleção brasileira! Aliás, esse nome, “Justificadores”, cai como uma luva também.

Pra carimbar a coisa toda com o selo de “Eita porra, isso é o Brasil de 2019”, existe uma cena em que um dos Justificadores invade uma biblioteca e segue-se o seguinte diálogo:

 

Justificador: Larguem esse livros decadentes! Saiam da biblioteca! Essas besteiras nunca mais vão poluir outra mente! – O Justificador dispara um lança chamas contra os livros e continua – Só importa saber o que é apropriado! Quem está mais justificado para queimar essa biblioteca?

Agora me respondam…onde foi que vocês viram um grupo de gente que se acha dona da verdade dizendo que os livros de história mentem nos últimos 2 anos?

Honestamente eu estava lendo O Povo da Eternidade e me divertindo com seu teor aventuresco e infanto-juvenil mas essa terceira edição me pegou como um soco no estomago que acerta em cheio e te deixa sem ar e desnorteado! Muita gente defende que o lance politico nos quadrinhos foi explorado mais abertamente na revista da dupla Arqueiro Verde e Lanterna Verde uns 5 ou 6 anos mais tarde, mas Kirby já vinha mexendo com o tema em seus títulos muito antes de se tornar algo comum! E esse é só mais um dos motivos pra eu gostar tanto do trabalho desse sujeito!

Bem, a história termina com um gancho para uma continuação no número quatro e eu tenho certeza de que vem mais soco no estomago por aí. Por isso eu digo, se não for ler Lendas do Universo DC: Quarto Mundo, procurem pelo menos por Forever People Nº03 ( e muito provavelmente o Nº04 também) seja por que meios forem. Esse quadrinho  precisa ser lido e usado como espelho da realidade pra quem lê quadrinhos e acha que eles não devem incluir politica. Esse inclui e ainda joga verdades dura na cara de quem se atrever a ler! Fica a dica.